Sem medo do poder

Julho de 1987
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Inteligente, aplaudido por empresários e dono de um discurso objetivo, Afif Domingos é a favor de um social-liberalismo

Se quiser, ele pode ser prefeito de São Paulo nas próximas eleições. Afinal, no ano passado, elegeu-se deputado constituinte com a votação estupenda de 508 mil votos, superando na Capital os campeões Ulysses Guimarães e Luís Inácio Lula da Silva. Guilherme Afif Domingos, uma das lideranças mais promissoras do país, vem conquistando cada vez mais espaço com seu discurso contundente contra os desmandos da administração do governo José Sarney, para o qual ele não vê saídas.

“Sarney foi um acidente histórico. Inebriou-se de popularidade porque sempre foi populista sem popularidade, e mergulhou numa crise de indecisão que persiste até hoje” – afirma este administrador de empresas de 43 anos, que já foi janista convicto na juventude, e que mais recentemente tornou-se malufista (foi candidato a vice-governador na chapa de Reinaldo de Barros em 82). Abandonou o malufismo antes do naufrágio para apoiar Antônio Ermírio nas últimas eleições.

Inteligente, falante, o ex-presidente da Associação Comercial de São Paulo recebe apoio e aplausos dos empresários de todo o país por suas propostas em favor de um “social-liberalismo” que substitua o que classifica de “social-estatismo”.

Dizendo que o Plano Cruzado foi um grande desastre, porque desorganizou totalmente a economia do país, ele conclama os empresários a subverterem o poder do Estado, e diz que não tem medo do poder. O Brasil, segundo ele, mantido o atual estado de indecisão política, caminha para a anarquia, um caminho que é absolutamente nefasto: “É preciso que os empresários do país passem a cobrar o choque da moralidade e da austeridade. Só assim o Brasil vai atravessar as dificuldades por que passa atualmente, este rio cheio de piranhas. Coma união de todos contra o fascismo corporativista nós vamos chegar à outra margem. E já enxergo no horizonte o sol iluminando esta terra de bom clima e cheia de gente com vontade de trabalhar por um Brasil melhor”.

A seguir, a íntegra da entrevista, concedida ao repórter Cley Scholz

ATO — O senhor tem denunciado no Congresso Constituinte a tendência estatizante expressa pela quase totalidade dos relatores das subcomissões. O que vem a ser esse “fascismo corporativista” a que o senhor se refere?

AFIF — O que eu tenho dito é que essa tendência estatizante demonstra que tanto o PMDB quanto os outros partidos estão contaminados pelo fascismo corporativista que inspirou o Estado Novo no golpe de 1937, e que a constituição de 46 não teve coragem de rever, para não mexer com o getulismo, força política inegável na época. Não concordo quando dizem que o estatismo em nosso País é somente de esquerda. É também de direita, que pretende um domínio do Estado sobre a sociedade nos mesmos moldes do nacionalismo de Hitler e Mussolini. A diferença entre a direita e a esquerda estatizantes está em que a direita mamou até agora, enquanto que a esquerda conquistou o privilégio que não quer perder de continuar mamando sem mexer nas tetas do Estado criado por este grande gênio político que foi o pai dos pobres e a mãe dos ricos. Getúlio tinha ambos sob controle pelo sindicalismo pelego, do lado dos operários, e organizações patronais também pelegas, sempre dispostas ao apoio à ditadura, em troca de isenção de impostos, cotas de farinha, subsídios, incentivos e concessões. A mais recente destas concessões, típicas do fascismo corporativista a que me refiro, que une direita e esquerda, é a reserva de mercado para a informática, que lhes garante continuar ineficientes e mesmo assim ter sucesso, não por oferecerem satisfação aos consumidores mas pelo que estes pagam, indistintamente, através de impostos. Hoje, todos os que defendem o “status quo” e o próprio avanço do Estado sobre os espaços que deveriam ser ocupados pela sociedade e sua força de trabalho e criatividade são fascistas travestidos de progressistas.

ATO — O que vem a ser o “afrouxamento” das licitações que o senhor denunciou recentemente, no episódio da Ferrovia Norte-Sul?

AFIF — Nós encaminhamos ao presidente do Congresso, senador Humberto Lucena, um ofício pedindo a leitura urgente do Decreto-Lei 2.300, para que ao menos os constituintes tomassem conhecimento da sua existência, e ao mesmo tempo, encaminhamos um pedido de explicações ao presidente José Sarney a respeito da concorrência da Ferrovia Norte-Sul. No dia 21 de novembro do ano passado a Nova República derrubou o rigor legal das concorrências públicas por meio do Decreto-Lei 2.300, que afrouxou o processo de tramitação das licitações. O Decreto-Lei 185, de 23 de fevereiro de 1967, exigia nas concorrências para grandes obras um projeto de engenharia completo, um cronograma físico-financeiro de execução e a comprovada existência de recursos. Já o novo Decreto-Lei exige apenas um projeto básico aprovado pela autoridade competente. A ferrovia Norte-Sul não obedeceu nem mesmo aos preceitos mais frouxos da legislação, quanto mais aos legais. Substituíram o projeto completo e definitivo por um projeto no qual a destinação de recursos é estimativa. O problema é que você pode estimar que uma obra vai custar US$ 2 bilhões e, no fim, ela custar US$ 30 bilhões. Orçar uma obra é uma coisa, mas estimar é outra bem diferente. Mas apesar de estranhas, estas modificações na lei e outras irregularidades que são questionadas na ferrovia são apenas a ponta do iceberg. Uma pequena demonstração de como a estatocracia lesa a sociedade em conivência com os amigos do rei. O governo usa, na manipulação dos orçamentos das obras, a inflação que ele mesmo gera criando a figura do excedente orçamentário, para lesar o contribuinte. Por isso, nesse ofício ao senador Humberto Lucena, nós também apelamos para o princípio da moralidade administrativa e para a necessidade de transparência da administração Sarney. Nesse sentido pedimos que o Decreto-Lei fosse lido e submetido à aprovação do Congresso Nacional, o que até agora, seis meses após a sua assinatura, não aconteceu.

ATO — Outro tema que mereceu grande destaque foi a sua declaração de que há um boicote na área econômica do governo para derrubar o presidente José Sarney. Que história é essa?

AFIF — Na verdade foi um alerta. Eu disse que há um boicote para derrubar o presidente José Sarney, pois somente assim é possível entender a sucessão de erros cometidos na condução da política econômica. Esse alerta ao presidente eu fiz por uma carta enviada através do ex-ministro Marco Maciel, em abril, onde eu dizia que alguns setores estavam se empenhando deliberadamente na criação de um clima de revoltados agricultores, dos empresários urbanos e dos cidadãos em geral. E essa situação persiste. A política agrícola foi inteiramente desrespeitada por aqueles que deveriam executá-la. A não divulgação no devido tempo do índice de Preços dos Produtores, o IPP, e o tabelamento de preços de gêneros alimentícios concomitante à rápida aceleração inflacionária inviabilizaram a política agrícola. Não bastasse isso, passou-se a exigir dos agricultores a correção monetária de débitos contratados sem correção, gerando revolta e insegurança aos produtores. Com exploração inflacionária e a consequente elevação das taxas de juros criou-se um desequilíbrio na agricultura que dificilmente será resolvido sem um conjunto articulado de medidas. Com relação às empresas, introduziu-se a extinção da correção monetária do imposto de Renda a pagar, de forma absolutamente ilegal, obrigando-as a dispensar de tempo e recursos para recorrer ao Judiciário, única forma de defenderem-se. Com os contribuintes os desmandos foram gerais. Em primeiro lugar, o governo negou que fosse ocorrer um aumento da carga tributária, destacando que ninguém precisava se preocupar com o pagamento do imposto. Em segundo lugar, corrigiu a tabela progressiva do imposto de renda constante da declaração em apenas 110%,quando a inflação era de 130% e, por fim, não deu nenhuma correção sobre o imposto retido na fonte no ano-base de 1986, ano em que se verificou uma inflação de 62,4%. Foram muitos os desmandos e muitas as irregularidades. Por isso, não há como atribuir tantos erros à mera incompetência. Estes erros somente encontram explicação na concepção de que há um boicote ao governo, cujo objetivo não é o de fazer rolar cabeças de ministros, mas sim, a do próprio presidente. Isso porque, a persistir essa situação, a única saída será mesmo a convocação de eleições diretas já para presidente.

ATO — O senhor é a favor das diretas já?

AFIF — Temo que a eclosão da crise econômica, pela indecisão do governo federal, exploda no meio do debate da confecção da Constituição, nos levando a debater temas fundamentais emocionalmente. Por isso, simpatizo com a proposta de convocação de diretas para janeiro de 1988. Ainda assim, há um risco: o de tocar o trabalho da Constituinte às pressas, prejudicando o bom senso. Portanto, se tivermos que convocar eleições, mesmo que a Constituição não esteja pronta, deveremos meditar mais sobre o prazo para concluir a Constituição. O certo é que a demora da Constituinte, mantido o clima de indecisão presente, com esta falta de governo, provoca o ambiente ideal para uma intervenção não democrática no quadro institucional vigente.

ATO — A sua proposta é de eleições gerais ou só para a presidência?

AFIF — Acho que todos devem ser novamente submetidos às urnas, pois há muita gente que se elegeu beneficiada por um verdadeiro estelionato eleitoral, que desperdiçou US$ 8 bilhões das nossas reservas, nos levando a esta ridícula situação de moratória.

ATO — E quanto à proposta de uma coalizão nacional? O que levou o senhor a lançá-la no início de maio deste ano?

AFIF — Foi exatamente o risco do impasse institucional e a espiral inflacionária que poderá atingir 1000% ao ano. Vejo a coalizão nacional com eleições diretas em 88 como a única saída para evitar o pior. O ideal seria que a eleição presidencial fosse realizada somente em 89, mas isso ficou impraticável depois que o presidente Sarney abdicou do poder na substituição do ministro Funaro, quando ele cedeu às pressões do deputado Ulysses Guimarães.

ATO — Na época o senhor chegou a usar a figura do príncipe herdeiro, que seria o presidente, e que por não ter maioridade ficou submetido à rainha-mãe que seria o deputado Ulysses Guimarães.

AFIF — Sim. A coalização nacional acabará nascendo por força de pressão da sociedade, que obrigará os partidos a proporem eleições diretas em 88. Nós, políticos, somos caudatários do eleitor, por isso será difícil salvar o mandato do presidente Sarney.

ATO — Qual a sua opinião sobre a discussão sobre o parlamentarismo?

AFIF — A adoção do regime parlamentarista só aumentará o clima de indecisão, caso seja adotado. Aumentará o clima de indecisão e aguçará a situação econômica, ameaçando tornar ainda mais explosiva a crise social. Eu já me posicionei publicamente contra, inclusive, classificando a proposta de um golpe que as oligarquias brasileiras já têm preparado para evitar que a sociedade brasileira renove os quadros dirigentes do País. Esse golpe é o parlamentarismo, que já foi usado e desmoralizado na época do governo de João Goulart. O inevitável fracasso desse regime de governo, na forma como está sendo engendrado, nos levará a uma situação propícia a intervenções não democráticas. O Brasil não precisa de um primeiro-ministro, o Brasil precisa mesmo é de um presidente com o rabo preso com o povo e não com as oligarquias.

ATO — Diante desse quadro caótico da economia e da política, qual a sua proposta para os pequenos, médios e microempresários?

AFIF — Tenho conclamado os micros e pequenos empresários a participarem de uma revolução destinada a derrubar a estrutura de poder existente no País, responsável pelo emperramento da economia brasileira. Só com uma revolução através da pequena burguesia, liderada pelos dirigentes de associações comerciais, será possível conquistar as liberdades políticas e econômicas em vez da indecisão do governo do presidente Sarney, marcado pela ausência de poder em função da ausência de apoio popular. No Brasil, a sociedade não tem qualquer participação no processo decisório. A estrutura da corte tem exatamente no poder público o responsável maior por todas as irregularidades administrativas, políticas e financeiras cometidas no Brasil. O processo decisório é privilégio restrito para os que estão encastelados em Brasília, cidade dos que só beijam as mãos do rei e onde quem beija melhor tem belas casas à beira do lago. A estrutura da corte domina absolutamente a base: da sociedade, formada pela classe proletária e pequena burguesia, usando sempre as bandeiras do socialismo e nacionalismo para a defesa dos seus interesses. O proletário não tem condições de promover uma revolução político-econômica. Essa tarefa tem que ser assumida pela pequena burguesia, mediante esquema que já está sendo feito junto às associações comerciais da região do ABC paulista pelo Partido dos Trabalhadores, o único partido com discurso capaz de empolgar a classe média. O governo que aí está é omisso e irresponsável ao não prestar contas à sociedade do que faz com o dinheiro público. Por esta razão, devemos exigir, por exemplo, uma auditoria para saber o que aconteceu com os recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço tirado dos trabalhadores. E outros tantos fundos como o FND, que servem apenas aos que estão gerando este monstro ineficiente que é o governo brasileiro.

ATO — O senhor não vê saída para o presidente Sarney, para voltar a ter crédito da opinião pública?

AFIF — O único caminho do presidente José Sarney é a moralização. É preciso acabar com os privilégios da corte. Se ele for duro no combate ao empreguismo e atacar as fontes de gastos poderá ter êxito. É preciso parar de gastar e de mandar a conta para o contribuinte. Eu quero saber o que vêm sendo feito com o FGTS, PIS, Finsocial. Todos estão sendo dilapidados enquanto são lançados mais impostos sobre o contribuinte e mantidos os incentivos para beneficiar os amigos do rei, os que moram em Brasília, frequentam a corte e fazem lobby para continuar recebendo as benesses do poder.

ATO — Como será, em sua opinião, o texto final da nova Constituição? Nós teremos uma constituição com tendência esquerdista ou justamente o contrário?

AFIF — Eu acredito na capacidade de articulação da maioria, que é de centro, mas que infelizmente não tem conseguido se articular nestes primeiros meses de trabalho. Penso que se a crise do País não fosse tão aguda o debate seria mais racional. Mas mesmo assim confio que a Constituição vai garantir o primado da livre empresa. O problema é que hoje não é mais possível limitar-se a defender a livre iniciativa. É preciso discutir, para valer, no Brasil, um conceito de eficiência. A ineficiência do País é tão gritante que o contribuinte já passou a sentir no bolso os seus efeitos. Somos testemunhas de uma rebelião fiscal sem precedentes em nossa história contemporânea. Há poucos dias fui testemunha pessoal desse processo quando funcionários públicos de Brasília vieram a mim apelar para que eu coordenasse uma articulação na Constituinte contra o fisco federal. Quando até a burocracia de Brasília acha caro o custo do desperdício, é porque há uma consciência nacional do problema. Creio que as teses que buscam a eficiência, baseada principalmente na descentralização de poderes, chegam a ser consensuais. Isso nos levará a um ponto que julgo positivo, ou seja, a pressão da conjuntura pode nos forçar a fazer uma reforma das estruturas, vital no momento. Um subproduto desse consenso poderá ser a atuação política de um grupo de centro articulado canalizando o fogo da crise no monumental maçarico, que venha a derreter as estruturas do Estado fascista corporativista, herança maldita da Constituição de 1937, que a Constituinte de 1946 não teve pois, como já disse, representava o mito do getulismo na época.

ATO — Que conceitos o senhor defende para a nova Constituição?

AFIF — Quanto menor for o poder do Estado melhor será para a sociedade. Defendo o fim dos privilégios, o respeito à propriedade privada e a responsabilidade individual. O que move o mundo é o interesse individual. Quem fomenta a luta de classes são os fascistas.

ATO — O senhor é de direita ou de esquerda?

AFIF — Um repórter já me fez esta pergunta e eu respondi que não sou parafuso de linha de montagem para ser classificado dessa maneira. Defendo o liberalismo.

ATO — O senhor será candidato a prefeito de São Paulo?

AFIF — Fui o deputado mais votado na Capital, ultrapassando inclusive o Ulysses e o Lula, e tenho enormes chances de competir.

ATO — Alguns críticos afirmam que o senhor representa os grandes interesses do capital. Isso é verdade?

AFIF — Sou empresário do setor de seguros. Eu represento o empresário que não tem reserva de mercado, não recebe incentivo do governo porque participa do risco. Quero ver implantada no País a liberdade política e econômica. Não aceito e não comungo com aqueles que querem manter a sufocante, não raro corrupta e, geralmente, ineficiente intervenção do Estado em nossas vidas. Defendo a livre organização sindical, que os trabalhadores possam se organizar sindicatos, inclusive por empresas, fiscalizando a gestão dos benefícios sociais. Acho que o seguro desemprego deve ser administrado pelos próprios sindicatos, os salários devem ser discutidos por aqueles que conhecem a situação específica de cada caso, podendo compreender eventuais flutuações de desempenho econômico e assim tornar mais estável o emprego, eliminando a tola e desnecessária luta de classes entre empresários e trabalhadores fomentada em beneficio próprio por quem não é empresário e nem trabalhador. Precisamos abolir os cartórios, os subsídios, o protecionismo, a reserva de mercado, o monopólio. Só devemos manter as estatais que puderem viver sem privilégio. As demais devem ser privatizadas a preços de mercado ou extintas. O que puder ser executado pela iniciativa privada não pode ser feito pelo governo. Que seja permitido às empresas administraremos recursos que hoje pagam ao Estado, sem o condizente retorno. Que as empresas repassem esses recursos ao trabalhador em investimentos nas áreas de educação, saúde, alimentação, habitação e previdência. A concessão desses benefícios, assim como a administração, deve ser fiscalizada pelo Estado e pelos trabalhadores. Os trabalhadores poderiam resolver se preferem a previdência estatal, educação e saúde pública, ou se preferem receber esses benefícios através da empresa.

 

Entrevista publicada na Revista ATO em julho de 1987

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