Assistindo ao último filme do grande cineasta paulistano Hugo Giorgetti, “O Príncipe”, sentimos na pele o apagar das luzes de uma cidade e dos valores que sempre cultivamos. A degradação do centro e o desaparecimento dos pontos de referência da nossa juventude, daquela cidade que não mais existe, a degradação dos valores, das pessoas, enfim a violência como a tônica do nosso tempo.
Marcou-se para 2002 a data da desativação e implosão parcial daquela chaga exposta. A hora chegou.
Coincidentemente, no porta-luvas do meu Fusca 1964, herança recebida de uma tia de minha mulher, encontrei um velho exemplar do “Guia de São Paulo” do ano de 1951 — que anunciava, entre tantas coisas, a 58ª edição do livro “Profecias de Nostradamus”, da Edições Cultrix, com destaque para o fim dos tempos em outubro de 1999.
Além das informações dos serviços da cidade, destacava os pontos de atração turística, como os parques, o Teatro Municipal e até Interlagos, a cidade balneária satélite da capital.
Segundo o guia, São Paulo tinha 2,062 milhões de habitantes.
O que mais me chamou a atenção foram as páginas 103 e 104, que informavam que uma das atrações da cidade era a Penitenciária do Estado, assim descrita no texto que, na íntegra, reproduzo: “Penitenciária do Estado. Situada no distrito de Carandiru, proximidades da rua Voluntários da Pátria, Santana. Tendo como meios de condução os bondes 43, que partem do largo de São Bento, e o ônibus 42 e 77, que partem da av. Anhangabaú.
A Penitenciária do Estado é considerada a primeira da América do Sul, não só pela suntuosidade de seus imensos pavilhões, dotados dos mais modernos requisitos impostos pela higiene, como pelo regime penitenciário ali adotado. Abriga o estabelecimento centenas de delinquentes definitivamente condenados, não só na capital, como de todo o interior do Estado. A sua lotação é para 1.500 reclusos, tendo cada um sua cela, onde são recolhidos somente à noite. Existem no presídio, grandes e bem aparelhadas oficinas de carpintaria, marcenaria, colchoaria, alfaiataria, sapataria, encadernação e outras mais, bem como padaria e lavanderias mecânicas.
Nos trabalhos e na aprendizagem, somente são empregados os presidiários que, depois de terem feito o regulamentar estágio de ‘meditação’, demonstrem bom comportamento.
Esse período de meditação consiste em deixar o condenado a sós, em sua cela, durante um certo espaço de tempo, dando-se-lhe, com isso, a oportunidade de pensar para algo deduzir do crime que praticou. Essa medida humana e inteligentemente instituída no moderno regime penitenciário tem apresentado ótimos resultados, não só quanto ao intuito da regeneração, que, neste ato, começa a dar os primeiros sinais, como pelo elemento que fornece às autoridades do presídio para poderem com segurança aquilatar o grau de temibilidade do delinquente.
Passado por esse período de observação e dado o mesmo os resultados regularmente exigidos, é o condenado, atendendo às suas aptidões, designado para trabalhar nas oficinas, na administração ou nos campos de cultura. Pelos serviços que presta, o presidiário recebe salários correspondentes, ou melhor, tabelados pela administração do presídio. Esses salários, pagos pelo governo do Estado, são, os dos reclusos solteiros, recolhidos à Caixa Econômica em nome dos mesmos e, os dos reclusos casados, entregues às suas famílias para o respectivo sustento.
Possui, ainda, o estabelecimento uma ótima banda de música e um afinado coro orfeônico, compostos de presidiários. Nos terrenos ajardinados dos presídios, em confortáveis prédios, residem com suas famílias os altos funcionários do estabelecimento.”
Parece que o que se pretendeu não foi implodir o Carandiru, mas encobrir com seus escombros a incompetência de uma sociedade que tem sido incapaz de construir seu presente e planejar o seu futuro. Será que, em vez de desativá-lo, não seria o caso de fazê-lo retornar às suas origens? Será que os novos presídios, que foram ou serão construídos, vão atender o que se pretendia quando da construção do Carandiru, ou em alguns anos estaremos discutindo a implosão dos mesmos?
Sei que é impossível voltar ao passado, mas não podemos desprezar suas lições para não repetir os mesmos erros cometidos ao longo do tempo. Se você quiser viajar pelas atrações do “Gula de São Paulo” de 1951, acesse o site www.acsp.com.br. Ali está a reprodução do mesmo. Será impossível não exclamar: “Ai, que saudades do Carandiru!”.
Publicado na Folha de São Paulo na edição de 08/10/02