Ao criar no ano passado a Secretaria da Micro e da Pequena Empresa, dando-lhe status de ministério, a presidente Dilma Rousseff escolheu como seu primeiro titular um homem cuja biografia tem tudo a ver com o assunto – o empresário, ex-presidente da Associação Comercial de São Paulo e ex-deputado constituinte Guilherme Afif Domingos, atual vice-governador de São Paulo. Há mais de 30 anos ele se dedica à tentativa – muitas vezes inglória, porque a máquina estatal assemelha-se a um monstro de sete cabeças – de simplificar a vida dos pequenos empreendedores, incluindo, é claro, os do comércio farmacêutico, hoje submetidos à mesma implacável carga tributária e burocrática dos grandes. Recentemente, num encontro privativo com o presidente da ABCFARMA, Pedro Zidoi, e o diretor executivo da entidade, Dr. Renato Tamarozzi, o ministro Afif foi informado dos problemas específicos que afetam a saúde das pequenas farmácias e se comprometeu a encontrar soluções, dentro da lei – como ele explica, nesta entrevista exclusiva.
A palavra de ordem é “super simplificar”
Qual é o universo de empresas brasileiras teoricamente atendidas pelo Ministério da Micro e da Pequena empresa?
Tomando como base a classificação da micro e da pequena empresa pelo faturamento – respectivamente 360 mil e 3,6 milhões de reais/ano – elas representam 97% dos CNPJs do país, em torno de sete milhões. É, portanto, maioria absoluta. Além disso, o universo da micro e da pequena empresa representa 52% da ocupação de mão de obra e cerca de 22% do PIB brasileiro.
Alguns críticos da criação de seu Ministério, que é o 39º do governo Dilma, invocam o extinto Ministério da Desburocratização, instituído há 35 anos, como uma iniciativa semelhante que não funcionou – porque a burocracia brasileira é uma das mais complexas do mundo. Seu Ministério vai ser diferente?
Eu trabalhei com o ministro Beltrão. Na qualidade de diretor de Associação Comercial de São Paulo, presidi, no início dos anos 80, um dos primeiros congressos sobre a pequena empresa realizados no Brasil. Aí surgiu a ideia do estatuto da microempresa – que o ministro Beltrão abraçou como uma tentativa de descomplicar a vida dos brasileiros. O estatuto foi aprovado em 1984, durante a realização do 4º Congresso Brasileiro da Pequena Empresa. E ali o ministro Beltrão me disse que mais não poderia fazer porque não havia na Constituição Federal uma determinação de tratamento diferenciado, pois todos são iguais perante a lei. Foi essa falha que me levou a ser constituinte, representando o segmento com a terceira maior votação do Brasil naquelas eleições. Inserimos o artigo 179, que se transformou no SIMPLES em 1994, quando eu presidia o SEBRAE, e no Super SIMPLES, em 2007, por emenda constitucional – já que o SIMPLES apenas estabelecia a simplificação dos impostos federais. O Super SIMPLES é uma espécie de ordem unida para tratamento fiscal diferenciado da União, estados e municípios, alcançado, como disse, 97% do universo empresarial brasileiro. Porém, boa parte desses pequenos estão fora, por critérios de exclusão que precisamos corrigir. Por isso, a principal bandeira do Ministério é a universalização do SIMPLES. Quando se facilita a vida dos pequenos, e se cada um gerar um emprego, temos aí perto de oito milhões de empregos.
O objetivo final dessa universalização é que todas as micro e pequenas empresas paguem menos imposto?
Se todos pagam menos, o governo arrecada mais. Esse é o resultado da formalização em massa.
O senhor publicou um artigo na Folha, em outubro do ano passado, tendo por título “Pense Simples”, que trazia uma imagem muito sugestiva: a burocracia é como a gordura colesterol – há a boa e a má. Qual é a burocracia boa?
É preciso haver alguma burocracia para se criar uma formalidade, uma organização, uma estrutura – mas é um controle que não precisa complicar a vida das pessoas. Infelizmente, existe a má burocracia: diversos órgãos que não se conversam e acabam gerando controles duplos e até triplos. Vou dar um exemplo atual com o eSocial, programa que unifica obrigações do campo previdenciário e trabalhista. Nesse caso, não houve a preocupação de realmente simplificar: está apenas se digitalizando a burocracia. Tudo o que era exigido no papel agora é exigido digitalmente…O problema é que pensar dá muito trabalho. O Steve Jobs já dizia que fazer simples é extremamente complexo. E fazer complexo é simples. É só não pensar.
Sua Secretaria, com status de Ministério, foi instituída em maio de 2013. Nesses nove meses, o que foi possível fazer?
Várias coisas, até porque estamos estruturando a política e determinando o rumo. Nossa principal ação no momento é a REDESIM, Rede Nacional para Simplificação do Registro, que vamos implantar até junho e é o primeiro grande passo para a criação de um balcão único de registros de empresas. É o grande desafio, o core business do Ministério – tanto que passou para o Ministério todo o sistema das juntas comerciais. O antigo DNRC, Departamento Nacional de Registro Comercial, passa a se chamar DRI, Departamento de Registro e Integração, para integrar a União com estados e municípios.
O grande problema é que estados e municípios não abrem mão de seus próprios sistemas, seus próprios impostos…
Mas a Constituição determina isso, não só no artigo 179 como quando fala do registro único, do CNPJ. Hoje, além do CNPJ, você precisa ter inscrição estadual, municipal, inscrição no Corpo de Bombeiros, na Vigilância Sanitária, no Meio Ambiente. Cada um desses órgãos gerou sua má burocracia.
Na prática, é possível unificar isso?
Dentro da Constituição e da lei, está sendo. Estamos construindo o super portal Empresa Simples, que fica pronto em julho – e começamos a implantar a unificação em algumas regiões do país até alcançar todo o território nacional. Esse, repito, é o coração dos programas do Ministério. Aliás, o Ministério surgiu do zero, e meu primeiro ato foi abrir um CNPJ. Aí exigiram reconhecimento de minha firma… Me insurgi e fui à presidente. A presidente ficou muito brava. E eis que, dia 24 de dezembro, a Receita suspende o reconhecimento de firma.
Aliás, o ministro Beltrão já tinha feito isso…
E o presidente Lula, em 2008, extinguiu o reconhecimento de novo. Mas ninguém respeitou. O papel do Ministério é fazer respeitar tudo o que venha a facilitar a vida da empresa e do cidadão enquanto empresa. Esse é o embrião da simplificação de processos federal, estaduais e municipais.
Há algumas questões burocráticas e fiscais específicas afetando hoje o comércio farmacêutico. Uma delas é o das certidões de custo muito elevado, cobradas indistintamente pelos conselhos de cada categoria, independentemente do porte da empresa – no nosso caso, o Conselho Federal de Farmácia. Isso tem a ver com o objetivo do Ministério?
Como eu disse, é preciso dar tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas. Os órgãos que não estabelecerem essa distinção não poderão cobrar das micro e pequenas empresas. Nós, portanto, invertemos o processo. Todos precisam aplicar um tratamento diferenciado – inclusive os Conselhos. A legislação que criou os Conselhos precisa incorporar uma menção a esse tratamento diferenciado. Isso também vale para a ANVISA. Aliás, a ANVISA nos procurou, porque desejava aplicar um tratamento diferenciado, mas a lei que a criou não permitia e os procuradores do órgão não autorizaram a redução. Mas hoje existe o respaldo legal. O mesmo ocorre em relação à legislação de meio ambiente, que hoje faz duras exigências até às micro empresas. Também o princípio da dupla visita está consagrado em lei. A primeira visita é para orientação, não para punição. E os órgãos do meio ambiente alegaram que esse princípio não valia para eles. Entrei na Advocacia Geral da União, que já deu um parecer, determinando o princípio da primeira visita como meramente orientativa, não punitiva.
Isso também vale para a Vigilância Sanitária, não?
Sem dúvida. Se houver alguma autuação na primeira visita, esta será nula.
Outra questão: um estudo do SEBRAE demonstrou que a carga de tributos para as pequenas farmácias pode chegar a 21%, quando o teto do SIMPLES, sistema que elas adotam, é de 11%…
Isso é em função da Substituição Tributária, que foi um golpe dado pelas fazendas estaduais, que se iniciou aqui em São Paulo e acabou por generalizar o processo da Substituição. Esse sistema sempre valeu para as cadeias homogêneas de distribuição – pneus, bebidas, cigarros, etc – em que existe um preço na ponta mais ou menos conhecido. Com esses setores, criou-se o conceito da eficácia da arrecadação na fonte. Aí decidiram generalizar para todos os setores. Acabaram tributando a estimativa de margens que pertencem ao domínio econômico – e com isso fixando margens fictícias, sem levar em conta os descontos dados na ponta. É o que ocorre com as farmácias. Isso fez disparar o imposto, não só muito acima do SIMPLES como da taxação de valor agregado real. Foi um assalto.
E como se corrige isso?
Estamos colocando na legislação. Já foi aprovado na Comissão Especial que examina o assunto na Câmara e em março haverá um grande embate no Congresso Nacional, com os governadores fazendo toda a pressão a seu alcance para não se mexer em nada.
Como vice-governador de São Paulo, o senhor não tem alguma influência sobre o governador nesse assunto?
Em absoluto. Até porque hoje saiu nos jornais que o IPVA de São Paulo é o maior do Brasil. O discurso de desoneração tributária na prática é conversa fiada. E como vice-governador, não dá para fazer nada.
Outra questão que ora mobiliza o comércio é a dificuldade burocrática de pequenas farmácias em aderir ao programa Aqui tem Farmácia Popular. Seu Ministério pode fazer alguma coisa para simplificar o processo?
Na conversa que tive com o Zidoi e com o Dr. Renato, eu disse que, nesses pontos muito específicos, eu também poderia ajudar, sim. Mas, para mudar, é preciso estudar o assunto em todas as suas minúcias para encontrar uma forma de beneficiar as pequenas farmácias. O Ministério da Micro e Pequena Empresa, na verdade, é um Ministério de coordenação de ações. O balcão de reclamações é conosco, para que possamos descobrir os gargalos e as soluções.
Há uma reserva de mercado no comércio farmacêutico para profissionais farmacêuticos com curso superior, que poderia ser preenchida por profissionais do nível médio, até porque faltam farmacêuticos. As pequenas empresas não podem ter um tratamento diferenciado também nessa questão?
Aí entra o Pronatec – Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego. Vamos fazer uma ponte entre o Pronatec e o aprendiz da Micro e Pequena Empresa. E a pequena farmácia talvez pudesse utilizar esses profissionais. O princípio é tratar os desiguais desigualmente – dentro da legislação atual ou alterando a legislação. Os setores são muito regulamentados e aqueles ligados à saúde pública, mais ainda.
Nesses nove meses no Ministério, houve algum momento de desalento?
Não. Eu estou nessa luta há mais de 30 anos. Avançamos muito. Mas falta muito. É um processo onde se avança permanentemente, mas tem de vigiar, sempre. A burocracia é como tiririca – não o deputado, mas a planta. Você planta a grama, mas se não tirar a tiririca todo dia, a tiririca toma conta da grama. Foi o caso do ministro Beltrão – tudo o que ele fez foi anulado pela reação da burocracia. O preço da simplificação é a eterna vigilância.
Se abrir uma empresa é difícil no Brasil, fechar é quase impossível. O que vai ser feito nesse sentido?
Com a unificação, nós vamos fazer um fechamento unificado, no balcão único. Está tudo em ordem? É só informar o nome do responsável e a localização dos livros. A baixa será dada imediatamente. Se surgirem dúvidas, reabre-se o processo.
Tudo isso está dentro de um contexto mais amplo: o Brasil tem uma das mais altas cargas tributárias do mundo. E aí?
Na verdade, 80% dos impostos são recolhidos pelas grandes empresas. Mas o Brasil arrecada muito e gasta muito para administrá-los. E falta definição para a destinação dos recursos. A União faz coisas que os municípios deveriam fazer, os municípios fazem o dever dos estados e assim por diante. Aguarda-se ainda a grande reforma fiscal. Enquanto isso não ocorre, que tal aliviar os pequenos para que eles possam sobreviver dentro da lei? No fundo, todo mundo é favorável a reduzir a carga tributária – mas ela permanece intocável.
Por quê?
A grande discussão no Brasil, nesse aspecto, é o pacto federativo. O município é que fica com o encargo do atendimento do cidadão no dia a dia. Ele é que sente a pressão da demanda popular. Ocorre que na divisão do bolo, 60% do orçamento ficam com a união, 25% com os estados e apenas 15% com os municípios. Vem governo, vai governo, fala-se muito e faz-se pouco. Aí entra a tática de guerrilha, que estamos promovendo.
A presidente cobra muito?
Ela é uma aficionada da ideia da simplificação. Tenho o apoio integral dela. A presidente me incentiva muito. Costuma dizer: “Precisamos barbarizar”.
Site da ABCFARMA (Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico)