Para Afif, a maior pobreza do país é sua elite política

1 de novembro de 1987
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A maior pobreza do Brasil são suas elites políticas e intelectuais, afirma o deputado federal Guilherme Afif Domingos (PL-São Paulo), presidencialista, favorável ao mandato de quatro anos e provável candidato à Prefeitura de São Paulo. “O mundo mudou – afirma Afif em entrevista exclusiva à Folha – mas nossas elites continuam as mesmas”. Critica duramente a “estatocracia” que, segundo ele, está no poder e exaure os recursos da nação com a prática do clientelismo, corrupção e protecionismo, “tudo sob a alegação de que defendem o nacionalismo”.

Ele inaugurou ontem, à avenida República do Líbano, zona Sul de São Paulo, uma sede que deverá funcionar como o centro difusor da ideologia do partido, o chamado “novo liberalismo”, que, essencialmente, condena o intervencionismo do Estado na economia e pretende representar os interesses da classe média em geral e, em particular, do pequeno e médio empresário.

Surpreendente, o deputado não hesita em proclamar semelhanças entre seu programa e o do dirigente soviético Mikhail Gorbachev, cuja política de abertura (“glasnost”) corresponderia à tentativa de valorização do pequeno empresário e de “soluções criativas de centro”. Diz que o Plano Cruzado foi um programa de “estelionato eleitoral”, afirma que o presidente do PT, Luís Inácio Lula da Silva, é uma liderança autêntica com quem poderá ter “alianças momentâneas”, apesar de ser socialista, e que acredita “não haver clima” para uma intervenção militar. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Folha — Como o senhor vê hoje as lideranças partidárias?

Guilherme Afif Domingos — Os partidos partem de lideranças representativas autênticas. O Lula, que é meu amigo, meu companheiro de Câmara, é uma liderança representativa autêntica, que marcou sua liderança na defesa dos trabalhadores. Eu sou uma liderança que marquei minha posição política na defesa do micro, do pequeno, do médio empresário, da classe média em geral, do contribuinte como um todo. As urnas se expressaram desta forma, confirmando-se esta posição como as maiores votações do país. Uma muito clara na defesa do socialismo e outra muito clara na defesa do liberalismo moderno, que nos confunde com a posição liberal do “laissez-faire”. Propomos o liberalismo novo, o conceito do social-liberalismo, que ganho força hoje no mundo inteiro. O conceito de pequena empresa começa a aparecer mesmo dentro dos países socialistas. Então, o PL, representado por mim em São Paulo, quer ser um partido novo, moderno, cuja proposta pretende empolgar a juventude.

Folha — O senhor parte do princípio de que há uma oposição doutrinária e ideológica entre trabalhadores e pequenos empresários?

Afif — O Partido dos Trabalhadores tem uma posição doutrinária.  Um partido socialista, que propugna o avanço do Estado. Nós propomos o social-liberalismo. A nossa preocupação é com o social, só que não enxergamos o Estado como o melhor meio de resolver os problemas sociais. O Estado é hoje muito mais um indutor de problemas sociais, um autor de problemas do que solução a estes problemas. Temos uma visão social profunda, só que partimos do princípio de que a ação dos indivíduos devidamente promovidos pela ação do Estado pode resolver os problemas de melhor formado que o social-estatismo em que o Estado intervém e executa. Mas esta diferença de concepção não impede que em alguns momentos o PL e o PT lutem conjuntamente por objetivos comuns em defesa dos interesses da sociedade e contra os desvios do Estado, como fizemos recentemente com a questão do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. O Estado estava se comportando como um estelionatário…

Folha — O senhor qualifica o Estado como estelionatário. O Ronaldo Caiado, presidente da União Democrática Ruralista, diz que o Estado é o maior latifundiário deste país. Há muita semelhança entre os discursos do PL e UDR. O senhor acredita que esta semelhança poderá ser a base para uma eventual convergência orgânica?

Afif — A UDR tem uma plataforma claramente corporativa, de defesa de interesses setoriais. Um partido não pode ser corporativo, e inclusive por isso eu acabo tendo um pouco de dúvidas sobre a proposta do PT, que acaba sendo corporativo. Mas eu acho que a gente tem que ser pragmático. Como eu disse que a gente pode desenvolver ações conjuntas com o Lula em determinados momentos, o mesmo pode ser aplicado ao Caiado. Mas o PL é uma coisa e a UDR é outra.

Folha — O senhor convidaria o Caiado a entrar no PL?

Afif — Como um partido liberal, não vetaríamos ninguém.

Folha — Dentro da União Brasileira dos Empresários, o senhor e Caiado foram acusados, numa nota divulgada pela assessoria de Mário Amato (presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), de estarem desenvolvendo uma ação que contribui para provocar a intranquilidade social. Como o senhor responde a isso?

Afif — Eu não acredito que esta acusação tenha partido do próprio Mário Amato. Agora, eu diria que o Amato tem hoje uma assessoria que eu não sei se é incompetente ou desonesta. Eu não acredito que eticamente o Amato faria isso, enviar uma carta confidencial ao Albano Franco (presidente da Confederação Nacional da Indústria) e ela sair publicada nos jornais. Quem é que fez isso?

Folha — Voltemos ao liberalismo do PL. Tendo o Estado brasileiro uma história de hipertrofia e de total envolvimento na vida da nação, o senhor acredita ser possível o liberalismo neste país?

Afif — Nós não excluímos o Estado. Isto confunde a nossa proposta com o “laissez faire”. Não tem nada a ver conosco. Estamos nascendo com um conceito novo. A ideia do social-estatismo é do passado, porque se confunde com o fascismo corporativista que instruiu a ação do Estado brasileiro. O modelo que estamos revendo hoje é o modelo de 30, que está sendo revisto no mundo inteiro. Até (o dirigente soviético Mikhail) Gorbachev está revendo Josef Stalin.

Folha — Há uma aproximação entre o PL e Gorbachev?

Afif — Se você considerar a política de abertura na União Soviética (“glasnost”), você vai notar uma incrível semelhança em termos da busca de um modelo novo, de centro, que não é nem o liberalismo, do “laissez-faire”, nem o social-estatismo, que pode ser de esquerda e de direita. Não é por acaso que existiram, na mesma época, Josef Stalin, Adolf Hitler, Francisco Franco, Oliveira Salazar, Benito Mussolini, Getúlio Vargas, Juan Perón. O conceito de social-estatismo que nasceu após a Grande Depressão (1929), que é o conceito de intervenção do Estado, teve seu modelo esgotado. Hoje, na Espanha, Felipe González (do PSOE) está revendo Franco. Em Portugal, o primeiro-ministro, Aníbal Cavaco e Silva, está revendo Salazar. A Itália é um país próspero e desenvolve um modelo liberal, baseado em pequenas e médias empresas. A Alemanha reviu profundamente Hitler. Em todos estes países, há uma concepção que procura a síntese entre o benefício social e a eficiência da ação individual, sem excluir o Estado. Por exemplo, será que não é melhor que na Constituição, ao invés de colocar que “a empresa é obrigada a dar à gestante ou à mãe 120 dias para que ela amamente a criança”, substituirmos isto por “cabe ao Estado incentivar às empresas a darem 120 dias às mães…”. Temos que partir de um Estado indutor e não um que dita as normas.

Folha — Mas no Brasil há o problema da hipertrofia histórica do Estado, do clientelismo e corrupção que a ela estão associados. Há a dívida externa, e há a experiência do “Plano Cruzado”, em que aparentemente o incentivo à economia de mercado levou ao limite a capacidade do parque produtivo…

Afif — O PL elaborou um conceito a respeito, que chamamos “triângulo de ferro”, sobre o qual pretendemos lançar um livro e discutir em cursos de formação de liderança em todo o Estado. Se nós imaginarmos uma pirâmide dividida em três partes, nós vamos ver a primeira parte (a base) que é a economia informal, que é brutal no país. É a reação dos indivíduos que tentam se libertar da ingerência do Estado para tentar sobreviver. A segunda parte é onde está a pequena, a média e até a grande empresa, que competem. Ali estão as empresas realmente competentes. Elas não vivem de favor, de reserva de mercado. A última parte (o vértice) é um triângulo, o “triângulo de ferro”, também conhecido como o “triângulo das Bermudas”. Ali está localizada o que eu chamo de “tirania do status quo”, cujos vértices são muito bem definidos. O superior é a estatocracia, nova classe no país, a que vive dominando e regulamentando o Estado em benefício próprio, usando a bandeira do social como escudo. No segundo vértice, o inferior, você vai ter aquele estranho capitalismo brasileiro, onde o capitalista tem a lista, mas o capital ele vai buscar em fundos públicos administrados pelo vértice superior, tanto empresas privadas quanto públicas. Mas esta empresa privada não é competente porque ela não compete. Ela quer reserva de mercado, subsídio, ajuda. E o caso, por exemplo, do sistema de transporte aéreo, completamente oligopolizado, em que é o burocrata que determina a tarifa e quando a empresa vai mal pega o dinheiro do contribuinte. Grande parte do déficit público brasileiro é gerada pela empresa privada que opera sem risco, cujos proprietários são os amigos do rei, com condições de ter acesso aos subsídios. O último vértice é o politico à cata de votos, que está sempre disposto a apoiar a política social da estatocracia porque é por ali que ele tem os empregos, os favores, usa a máquina pública para satisfazer a sua clientela. Favorece, por exemplo, o falso nacionalismo das empresas que fazem parte deste triângulo, porque são elas que financiam suas campanhas. Portanto, esta ponta da pirâmide é o opressor deste país, que tomou o empréstimo para manter um crescimento concentrado, que emite dinheiro para manter a tirania do “status quo” ou se endivida através do braço conivente da estatocracia que é o sistema financeiro, que mantém o monopólio da captação da poupança nacional a serviço do triângulo de ferro, às custas do trabalho da nação.

Folha — O fracasso do “Plano Cruzado” não terá provado que o país é incapaz de conviver com o estímulo total à produção?

Afif — O “Plano Cruzado” foi um plano de estelionato eleitoral, e não um plano econômico.  É um plano cujos responsáveis hoje estão aí pregando pelo país quando deveriam estar respondendo a processo pelo assalto contra o povo brasileiro. Esta é a verdade que deveria ser dita e não está sendo dita. Eu estranho o fato de que determinados setores estejam silenciando quanto aos prejuízos que o “Plano Cruzado” causou à nação, inclusive os prejuízos que foram dados com a importação de produtos, que são os casos de corrupção mais escabrosos da história brasileira. Há um silêncio geral e eu o estranho.

Folha — A proposta de modernização da economia do PL implicaria mexer com interesses enraizados ao longo de várias décadas de nossa história, pelo menos desde o governo Vargas interesses envolvendo o funcionalismo público, estatais, setores das Forças Armadas. O senhor acha isso viável?

Afif — Ou você tem a ação revolucionária, ou a ação evolucionária. Nos últimos 26 anos, não tivemos eleições para presidente. E isto estimulou o “triângulo de ferro”, porque cada dia mais o governante estava comprometido com a ação deste triângulo e cada vez menos comprometido com a nação. Acho que a única forma é a eleição direta para presidente porque é o momento em que o povo faz um pacto direto com o seu governante. O parlamentarismo cria um “atravessador” entre o povo e seus governantes. O parlamentarismo não pode ser aceito agora. É a fórmula encontrada pela tirania do “status quo” para que o governante eleito pelo povo tenha que negociar com o “triângulo de ferro”. Daí a minha proposta de que se faça um plebiscito junto com a eleição presidencial, onde se escolhe o presidente da República e no quadrinho embaixo o sistema de governo, para que então seja dado respaldo ao governante para que ele possa travar esta grande luta contra o “triângulo de ferro”.

Folha — Em termos eleitorais, o senhor pretende candidatar-se a prefeito de São Paulo?

Afif — As únicas eleições marcadas até agora são as municipais, as demais são incertas. O nosso projeto está baseado nesta realidade. Vamos disputar as municipais, e a Prefeitura de São Paulo é uma delas. Já temos 120 diretórios formados no Estado e, na medida do possível, pretendemos lançar candidatos em todos os municípios. Vamos fazer nossas convenções gerais por volta de fevereiro e a nossa previsão é a de que teremos, no mínimo, trezentos diretórios formados.

Folha — O senhor admite, então, a possibilidade de se lançar para presidente quando for definido o calendário eleitoral?

Afif— Acho que, por enquanto, é prematuro discutir isso.

 Folha — O senhor confirma, então, sua candidatura à Prefeitura de São Paulo?

Afif — Seria o projeto natural em função da estratégia do partido, mas ainda é prematuro discutir isso.

Folha — Como o senhor avalia o quadro conjuntural hoje?

Afif — Acho que há a vertente de três crises profundas e sérias. Uma é a crise política gerada por um acidente histórico. O presidente José Sarney – nada pessoal contra ele – é um acidente, até mais grave do que João Goulart ou Café Filho. O pacto de transição – pelo fato de não termos eleição e tentarmos uma legitimação via indireta – deu uma procuração pessoal e intransferível para o presidente Tancredo Neves. Com a falta dele, ficou muito difícil para o presidente Sarney obter essa transferência de procuração. Ele tentou grandes lances para consegui-la, mas todos, pela precariedade das propostas, foram fadados ao insucesso. A segundo crise é econômica, como consequência de uma ação de governo fraco que, por ser um governo de concessões, paga um preço muito alto para sustentação de uma política que acaba sendo a política dos governadores. Com a falta do PMDB para estruturá-lo, o governo tentou reeditar a política dos governadores a um preço alto, que inviabilizou todo e qualquer plano de austeridade. E terceiro, a crise institucional, que temos que evitar a qualquer custo.  E exatamente não completarmos a Constituição, uma crise interna que inviabilize a votação da nova Constituição. Somando estas três crises, temos o risco de cair no caos e o caos gera o vácuo de poder. Temos que evitar a crise institucional. Por isso, temos que abrir o diálogo, uma articulação da maioria, para que possamos terminar o mais rápido possível a Constituição. O deputado Ulysses Guimarães tem toda razão quando pede que a Constituição seja votada o mais rápido possível.

Folha — Qual será a decisão do plenário sobre mandato e sistema de governo?

Afif — É difícil afirmarmos qualquer coisa taxativamente. Hoje parece ser irreversível o mandato de quatro anos e presidencialismo. Mas política é como nuvem, dizia, Magalhães Pinto. Cada hora que a gente olha está de um jeito. Acho que o único pacto viável hoje é o pacto das urnas, por isso apoio os quatro anos e o presidencialismo.

Folha — O senador José Richa (PMDB-Paraná) também propõe um pacto politico, mas no âmbito do parlamentarismo…

Afif — No caso, acho que o senador José Richa está fazendo muito mais o jogo do “triângulo de ferro” do que da sociedade. Parece que o senador José Richa tem pavor de eleições. Gostaria de tecer que eu não sou contra o parlamentarismo em geral, mas acredito que este tipo de sistema exige partidos legítimos. No Brasil não há uma estrutura partidária autêntica. Ela ainda está bipolarizada como consequência de um governo de exceção, e terá que passar por uma transformação profunda. Ela gravitava no eixo do governo de exceção, dividida entre oposição e situação. Enquanto não tivermos partidos autênticos e uma máquina pública independente da manipulação dos partidos, sem “trens de alegria” e assim por diante, não há como introduzir o parlamentarismo.

 Folha — O senhor não estaria idealizando um processo inviável de moralização da máquina pública? Existe, em sua opinião, alguém com capacidade para fazer isso?

Afif — A história demonstra que, em época de crise, os problemas nunca foram resolvidos através da divisão do poder. Foi centralizando o poder. Eu prefiro que ele seja centralizado por um processo democrático do que por força do caos. Acho que não temos que ter medo das urnas. Que cada um seja competente para vender seu peixe. Inclusive porque eu acho que nestas eleições o grande embate não será entre “esquerda” e “direita”, será entre o novo e o velho, o moderno e o antigo. Para uma crise não convencional como a que vivemos, precisamos de uma solução não convencional. Precisamos abrir o campo.

Folha — O senhor teme um golpe militar?

Afif — Acho que a crise é tão clara e profunda que a solução das urnas quase que se impõe naturalmente. Agora é a hora da profunda mudança. Não temos que temer as urnas. Agora, é lógico que muitos que vivem no “triângulo de ferro” têm pavor deste momento. Acho que esta campanha presidencial pode se tornar numa das maiores campanhas cívicas do país. Mas não acredito em golpe. Não há clima para isso.

Folha — As eleições não resolverão tudo. Há, por exemplo, o problema da dívida externa.

Afif — A dívida está sendo colocada como um cavalo de batalha. O “não” ao Fundo Monetário Internacional não é, na realidade, um “não” ao FMI.  É um “não” à auditoria que o FMI realizaria nas contas do país. O problema é que o “triângulo de ferro” não quer esta auditoria. Ele não quer a auditoria do FGTS que eu pedi. Ele quer decreto-lei para ir buscar mais dinheiro, como está fazendo agora. Inclusive não há identidade, a propósito da dívida, entre o Brasil e os países latino-americanos. O Brasil não é um país pobre, é um país em que há pobreza. E a maior pobreza do Brasil são suas elites. O Brasil tinha que estar procurando parceria com os países asiáticos (Japão, Formosa, Coréia do Sul), absolutamente pobres de recursos naturais e ricos em gente (educação, formação técnica). O Brasil tem características opostas. Poderíamos ter um novo surto de desenvolvimento, como o que Juscelino Kubistcheck criou. A ferrovia certa não é a Norte-Sul, mas sim uma que saísse do Brasil central para o Pacífico, para termos um porto de saída para o Oriente, competindo com os Estados Unidos em termos de frete. Mas, enquanto a União Soviética e a China estão convidando o Japão para uma parceira deste tipo, a elite intelectual brasileira está dizendo que nós temos que ser autônomos. Em vez de fazer aliança com os ricos, quer fazer aliança com os pobres. O mundo mudou e a elite brasileira não mudou.

Folha — O senhor propõe uma auditoria pública na dívida externa?

Afif — Acho que a nação brasileira tem o direito de saber para onde foi o dinheiro da dívida.

 

Publicado na Folha da Tarde em 01/11/1987

José Arbex / Agência Folha

 

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