Lá se foi a Corte viajar outra vez. Contam-se maravilhas do alegre passeio que revive o esplendor do antigo regime desabado há 200 anos. A “nave venturosa” conduziu, às centenas e com todo o conforto, os eleitos do Erário Nacional, deslumbrados pela glória e embriagados de prazer. Um acontecimento digno de ser equiparado ao episódio da entrega de Maria Antonieta ao também premiado delfim, o futuro rei Luís XVI, em Estrasburgo, no ano de 1763.
Cortesões e cortesãs, guardas reais, ministros, clérigos, grandes generais, dignitários, favoritos e uma infinidade de usufrutuários da nobreza estiveram lá, em trajes novos, fiéis à época e às criações da moda. O velho Luís XV, já vivendo a realidade do “après moi le déluge”, dera a última sangria no combalido tesouro real para que aquela viagem e aquele encontro, a ser seguido pelos solenes esponsais na capela de Luís XIV, em Versalhes, constituíssem o seu maior momento de glória: a aliança da França com o sacro Império. Era o apogeu do delírio e da fantasia e o absolutismo parecia impregnado de eternidade. E Versalhes dançava, comia, caçava, bebia e esbanjava enquanto o povo, o Terceiro Estado, gemia sob o peso dos impostos escorchantes, da tirania do poder e da tutela dos grupos privilegiados de parasitas e aproveitadores indiferentes aos sentimentos da nação.
“Tenho medo de aborrecer-me.” Era assim que Maria Antonieta, a perdulária, manifestava a sensação de tédio e de fartura do seu tempo e do seu meio, no reino que herdou por graça divina. Em menos de 30 anos tudo aquilo ruía. O povo de Paris escreveu, com sangue e terror, o maior acontecimento político da humanidade depois do advento de Cristo. A liberdade inspirou a rebelião dos espoliados, ao lado da igualdade e da fraternidade.
Duzentos anos depois, muitos povos ainda não puderam realizar a revolução do Terceiro Estado, que é a base da pirâmide social, contra o seu topo que sustenta os privilégios, como fez o povo francês com tanto destemor.
É curioso o roteiro dos nossos alegres cortesões. França, Rússia e Portugal. Será que aprenderam alguma coisa? Será que abriram os olhos e as consciências para entender o que se passou na história desses povos nos últimos dois séculos? Ou irão regredir à cena de Estrasburgo? Ou ao fausto da corte de Catarina II? Ou à imagem do absolutismo de João V, cercado de áulicos, abadessas e favoritos no seu monumental palácio de Sintra, edificado e sustentado com o ouro e o tributo dos vassalos do Brasil?
Certamente o devaneio de nossa atual corte itinerante irá transportar-se ao ideal da sociedade européia do século 18 que a Santa Aliança queria perpetuar, enquanto se empanturra de iguanas inacessíveis aos pobres contribuintes que aqui ficaram. A viagem é uma sucessão de regabofes e saraus literários. Um festival de frivolidades garantido pela generosidade da Fazenda pública.
Vamos ver até onde irá esse cortejo que escandaliza o mundo com a prodigalidade e a insensatez. Até onde irão o esbanjamento e a liberalidade dos “estadistas” que insistem em permanecer com os pés “firmemente plantados” no ar, dos políticos que se determinaram a caminhar para trás, dando as costas à Nação explorada.
E a Corte voltará mais afoita. Talvez até mais audaz para o esbanjamento e o furor fiscal. Seus pares continuarão se servindo do Tesouro e enganando o povo através de uma série e manobras diversionistas e protelatórias, com o único objetivo de eternizar a oligarquia estatocrática e corporativa que domina o Brasil há mais de 50 anos.
Talvez eles tenham sucesso. A bastilha fiscal ainda está solidamente erguida em nosso país, mantendo lá aprisionados o câmbio, o poder de emissão, a competência para confiscar, taxar, anistiar, subvencionar e isentar. A força do governo é uma fonte inesgotável ‘de concessões. E o povo ainda está perplexo, dividido e mistificado.
Os velhos “caciques” políticos que se digladiam para manter a usurpação oligárquica tudo farão para inviabilizar as mudanças que o eleitorado jovem almeja às portas do século 21. Irão ao absurdo para manter o monopólio da engrenagem estatal que nos legou à sistema fascista ainda renitente no Brasil. Tentarão usar a nova Constituição como escudo, mas terão de desafiar a determinação de 80 milhões de eleitores cuja maioria jamais escolheu um presidente da República. Terão de enfrentar a força do verdadeiro Brasil que desconhecem e não entendem.
1989 está chegando. O Brasil comemorará o centenário do advento da República unindo-se no projeto de transformação do velho Estado corporativo num legítimo instrumento de conquistas para o desenvolvimento com liberdade.
Veremos se o Brasil quer progredir com a democracia ou afundar no nada que é a continuidade da usurpação. Veremos se a fortaleza continuará em pé ou se o anseio de modernidade restituirá o Brasil ao seu povo.
Até quando o povo trabalhador continuará financiando esse baile, esse festival de futilidades que a chamada “Nova República” leva adiante num momento tão difícil da nossa economia?
A verdadeira República, que nos levará ao novo século, vai se erguer como resultado do acordo da Nação com o Estado. Será o advento de uma nova concepção para gerir os negócios públicos, em que o sistema monopolizador e oligárquico não mais prevalecerá. E o assalariado terá segurança, a juventude terá esperança e o empreendedor trabalhará em paz.
Vamos construir uma República que defenderá o Erário e prestará contas ao contribuinte, permitindo à família brasileira viver e trabalhar com dignidade e sem fome, para que a cidadania se imponha sobre a burocracia corrupta e corruptora. Essa República nos fará caminhar para a frente, sem desvios à direita ou à esquerda.
Os contribuintes também fazem a História.
Aqui, como na França de 200 anos passados, conheceremos quem comprou o colar da rainha.
Publicado no O Estado de S.Paulo em 27/10/88