Na marra a Constituição não sai

Março de 1988
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Se o conservadorismo no Brasil anda carente de líderes mais consistentes, o deputado federal Guilherme Afif Domingos, 44 anos, pelo menos já está no caminho certo para resolver, a médio prazo, este problema político fundamental das elites do poder no Brasil. Nos seus 12 anos de vida pública, Afif ainda não cometeu erros. Soube, inclusive, em pouco tempo, sair da sombra inconveniente de Paulo Maluf, o “patrício” e amigo empresário que o lançou na arena política em 1976.

Desde 1986, quando concorreu a deputado federal e obteve uma votação tão grande quanto inesperada — mais de 500 mil votos —, Afif brilha com luz própria. Na Constituinte e como líder do Partido Liberal ele foi um dos articuladores do “centrão”, representando os interesses do empresariado que o elegeu. Distanciou-se, logo, porém, dos radicais dirigentes do grupo. Habilidoso, tem preferido, sempre, o caminho da composição política. Na semana passada, Afif recebeu o diretor da sucursal de Senhor, em Brasília, para um café da manhã no Hotel Canton, onde concedeu esta entrevista.

O sr. foi um dos fundadores do “centrão”. Como explica, então, sua destacada participação, hoje, na busca de um novo texto constitucional que surja do consenso?

Acho que houve uma desfiguração total do “centrão” desde o seu início. Eu participei ativamente do seu nascimento. Era, em primeiro lugar, um agrupamento parlamentar que percebeu os problemas criados pela regra do jogo da Constituinte. O que havia era uma regra autoritária, que não permitiria ao plenário, na prática, apresentar novas emendas. Praticamente iria nos transformar a todos em meros homologadores do que já fizera a Comissão de Sistematização. Se a Sistematização ainda fosse uma representante legítima da média das opiniões do plenário, tudo bem. Mas acontece que ela era uma comissão excêntrica, que não representava o pensamento da maioria.

Há indícios seguros de que o “centrão” foi uma coisa que nasceu de fora para dentro da Constituinte, através de inspiração empresarial. Está correto?

Não. Fui o primeiro a dar um passo para a formação do “centrão” e sou político, sou um parlamentar…

O sr. fez isso estimulado de fora, ou não?

Houve uma coincidência de fatos que levou à ideia de uma grande articulação de todos os níveis, quando, na verdade, os empresários não estão preparados para esta grande articulação. Isso ficou provado através dos tempos. O que ocorreu foi que, de um lado, houve a aprovação, pela Comissão de Sistematização da estabilidade no emprego, e isto criou uma série de reações no seio do empresariado. A aprovação da estabilidade no emprego foi fruto de um desencontro de articulações da própria área empresarial e acabou levando a uma espécie de lavagem de roupa suja no empresariado. Verificaram os empresários que não estavam falando a mesma linguagem e passaram a buscar uma forma de articulação. De outro lado, aqui dentro da Constituinte, o que aconteceu foi um fenômeno muito menos empresarial e muito mais parlamentar: os parlamentares começaram a se sentir marginalizados. Eu pressentia esse tipo de revolta.

Aí os interesses se juntaram?

Sim, mas foi coincidência. Surgiram, ao mesmo tempo, duas frentes: a empresarial e a parlamentar, trabalhando ambas na Constituinte. Na área empresarial, inclusive, foi ressuscitada a UBE — União Brasileira dos Empresários —, entidade que na verdade nunca existiu, mas teve sua ressurreição formalizada em Brasília com posse e tudo. Isso aconteceu ao mesmo tempo, o que deu uma ideia de que era o resultado de articulação única. Olha: seria muita competência!

O sr. não respondeu à pergunta inicial: fundou o “centrão” mas agora é um conciliador. Como explica isso?

Desde a batalha pela mudança do regimento, eu já procurava mostrar que, no plenário, conseguir 280 votos não seria nada fácil. Eu sabia que o “centrão” não é um agrupamento uniforme, tem vários grupos dentro dele. A emenda 26, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte, exige 280 votos positivos para aprovar ou rejeitar qualquer matéria. Ora, nenhum dos grupos da Constituinte tem tantos votos. Logo, sem um processo de negociação não sai a nova Constituição. A primeira tentativa de impor a vontade do “centrão” sem negociação frustrou-se no primeiro dia da votação.

Nesse episódio o sr. ficou contra alguns líderes do “centrão” como Carlos Sant’Anna e Roberto Cardoso Alves. Eles não queriam negociar?

Em épocas passadas, juntamente com o Luiz Eduardo Magalhães, nunca fomos favoráveis à votação como rolo compressor. Já ali o Roberto C. Alves e o Carlos Sant’Anna foram os que comandaram a posição antinegociação. A estratégia deles deu certo para o regimento. Porque não era matéria de convicção, de doutrina. Agora, quando se vota matéria de convicção, imaginar que se vai manter a unidade do grupo é uma loucura.

Sempre haverá alguns temas sobre os quais não há negociação possível. E o caso da estabilidade, não?

Aí, democraticamente, nós temos de ir para o voto. Mesmo assim, cada parte terá de procurar conquistar, através de concessões, o apoio de pelo menos alguns setores da outra, para alcançar primeiro os 280 votos. No caso da estabilidade, por exemplo, um grupo quer manter o texto da Sistematização, proibindo a demissão imotivada. Essa é uma proposta que não existe hoje em parte alguma do mundo. Até a União Soviética está revendo o princípio da estabilidade pura. Um outro grupo, que é predominantemente do PMDB, quer manter compromissos de campanhas passadas em favor da estabilidade, mas agora sabe que não pode adotar o princípio da estabilidade pura porque é loucura. Ao mesmo tempo, não quer ir para o princípio da indenização, preferindo mascarar o texto da Constituição, colocando nele algo tão vago e tão leve que permita as maiores interpretações possíveis. Querem dizer para uns que a estabilidade foi colocada e para outros dizer que a estabilidade não foi colocada no texto constitucional. É uma posição transformista. Esse grupo quer voltar ao texto do Cabral — inodoro, incolor, remetendo à lei a definição do princípio da garantia do emprego, não prevendo na Constituição se haverá ou não indenização. Há um terceiro grupo, que é o nosso, que quer, explicitamente, colocar na Constituição o principio da indenização como forma de compensar a demissão imotivada.

A indenização que seria depois fixada em lei?

A indenização seria fixada em lei, mas haveria uma disposição transitória segundo a qual enquanto a lei não fixar nada — e isso é uma proposta feita pelo Luiz Antonio Medeiros e pelo Rogério Magri — a multa do FGTS seria aumentada de 10% para 50%. As negociações estão girando em torno destes pontos e me parece que o grupo majoritário é o que defende o princípio da indenização. Mas ainda não há unidade em nosso grupo sobre o percentual desta indenização, mesmo nas próprias disposições transitórias.

Os srs. vêm tendo contato com as lideranças sindicais. Como elas vêem essa solução da indenização?

Existe um sindicalismo que está menos comprometido com a reivindicação dos trabalhadores e mais comprometido com a plataforma de partidos políticos de esquerda ou de extrema esquerda. Sabemos que os partidos comunistas no Brasil, ou suas versões mais disfarçadas como o próprio PT, muitas vezes usam o movimento sindical como forma de explicitar as suas bandeiras ideológicas. É muito mais um sindicalismo de ideologia do que um sindicalismo prático, de benefícios para o trabalhador. Eles usam o confronto capital-trabalho para promover a luta de classes e ser intransigentes nas suas proposições. Esse sindicalismo realmente não está com a tese da indenização. Na verdade, eles querem criar um confronto de tal monta que possa desestabilizar o próprio sistema pseudo-capitalista em que estamos vivendo. Por outro lado, existe um grupo sindicalista, este sim, comprometido com a conquista. Ele é pragmático, não é ideológico. Quer saber o que vai ser dado realmente de benefício ao trabalhador. Esse grupo, que hoje inclusive predomina dentro da CGT, é o grupo interessado em negociar o quantum em termos de indenização.

Esta posição é aceita pelos líderes sindicais Luiz Antonio Medeiros e Rogério Magri?

Sim.

Há outros pontos que provocam ou provocaram discussões mais acirradas na Constituinte?

Há, por exemplo, uma insistência da esquerda mais radical e da centro-esquerda de não colocar no mesmo parágrafo, como crimes inafiançáveis, a tortura, o terrorismo e o tráfico de drogas. Tem um grupo que quer dar dignidade ao terrorismo. Não quer que ele seja tratado da mesma forma que o tráfico e a tortura, como era a ideia do “centrão”.

Mas são coisas diferentes.

Sim. Eu vejo isso como um pouco de ranço, ainda como consequência da marca dos acontecimentos dos últimos 20 anos, que tanto influenciaram essas pessoas ou em termos de terrorismo, ou em termos de tortura.

Há outros pontos que tiveram de ser negociados?

Há. Eu mudei a posição do meu grupo sobre um desses pontos. Eles estavam muito preocupados com o problema do mandado de segurança coletivo e com o poder e a legitimidade que ele daria às associações para defenderem os seus associados, serem parte legítima dos processos. Então diziam: “Isso é uma loucura, não pode ser.” Eu falei: “Vocês estão vendo isso pela ótica de agrupamentos sindicais atacando uma empresa, quando, na verdade, eu não tenho medo disso. Acho até que faz parte do jogo de organização. Os patrões e os trabalhadores podem organizar-se para se digladiarem entre si. Não tem problema nenhum. O que vocês não estão raciocinando é sobre a força que esse mandado coletivo dá ao indivíduo para enfrentar o Estado, que é o grande vilão da história.” E dei o exemplo do contribuinte. Ele é lesado, enfrenta atitudes inconstitucionais do governo, muitas vezes, mas o indivíduo é muito pequeno para acionar o Estado, para enfrentá-lo na Justiça. E muitas vezes tem medo da represália do Estado, que tem o poder de devassar a vida dele, fechar a sua empresa. Então, o individuo é sempre acuado, não podendo reagir contra o avanço da ilegalidade do Estado na tributação. Uma entidade associativa tendo o poder de substituir o indivíduo, ou se juntando a ele, nessa luta contra o Estado, seria um fato positivo. Eu falei isso e eles reconheceram: “Você tem razão.”

O “centrão” e o habeas-data…

O “centrão” não aceita. E eu não tenho por que não aceitar. Eu acho que o cidadão tem o direito de saber dados a seu respeito que estejam nas mãos do Estado.

O que o sr. acha da jornada de trabalho?

Acho que o bom senso aponta na direção das 44 horas.

E as horas extras?

Hora extra em dobro colocada na Constituição é uma loucura. O quantum vai ter de ser fixado, inclusive nas negociações coletivas. Porque quem coloca esse tipo de coisa na negociação da Constituição não confia no diálogo capital-trabalho. Na verdade, nós temos hoje de confiar em que as forças da sociedade têm condições, de acordo com o setor, de fixar aquilo que seja bom para os dois lados.

De qualquer forma, o Titulo II é apenas o começo da estrada. O Título IV é mais polêmico, porque é eminentemente político, já que trata do mandato e do regime de governo.

Aí o problema é o seguinte: não vamos encontrar mesmo unidade. Nem o “centrão” vai comportar-se com característica doutrinária, porque a matéria é política. Eu vou dar um exemplo: meu amigo pessoal, o Bonifácio de Andrade, um dos relatores do “centrão” para todas as matérias constitucionais, é parlamentarista. Eu sou presidencialista, assim como a maioria do “centrão.”

 Por que o sr. é presidencialista?

Porque acredito que o parlamentarismo é a cobertura do edifício democrático. E nós ainda estamos nos alicerces. Teríamos ainda de formar uma estrutura para a introdução, com êxito, do parlamentarismo. Esse regime, agora sem partidos, sem burocracia estável, correria o risco de uma rápida desmoralização. Eu não sou contra o parlamentarismo. Eu sou contra a introdução do parlamentarismo, agora.

Entretanto, o presidencialismo está implantado desde o início da República, e como o sr. fala não temos uma estrutura democrática. O sr. não acha que isso poderia ser um problema causado pelo próprio presidencialismo?

Não. Tudo decorre do problema mais sério que temos: a falta de instituições. No Brasil, infelizmente, nós ainda estamos com as instituições políticas que nos foram legadas pelos governos gerais. Em matéria de instituições, o que temos é o Estado, que, aliás, nasceu antes que a Nação brasileira, e temos ainda as Forças Armadas e a Igreja. Exatamente as instituições que nos foram legadas pelos portugueses. Ocorre que as elites brasileiras, em vez de terem o Estado como um meio para se atingir um fim, fazem do Estado um fim. Elas são cooptadas pelo Estado. Então, política no Brasil não se faz pelos partidos políticos, faz-se com a máquina do Estado. As elites se incrustam no Estado de tal forma que de lá só saem quando existe o que a gente chama de pêndulo político — ou por efeito da vitória de um caudilho populista ou por efeito da intervenção dos militares no processo. Então, hoje, nós estamos no limiar de uma nova era. Daqui a uns dez anos, teremos novamente partidos políticos que representem anseios de maioria. E me parece que pela pouca história dos partidos políticos no Brasil, a tendência será a de termos dois grandes partidos de centro dominando a cena política. Estes seriam os partidos que se revezariam no poder num regime parlamentarista. Se não houvesse a nefasta intervenção da revolução de 1964 no ambiente político brasileiro, eu acredito que já teríamos uma estrutura partidária, cujo eixo seria talvez o PSD e a UDN. Mas a revolução destroçou tudo. Nós temos de recomeçar a busca deste eixo partidário mais naturalmente.

O sr., então, é presidencialista convicto. Qual é o seu candidato a presidente?

Por enquanto, eu não tenho.

O seu candidato é o sr. mesmo?

Primeiro o meu partido, o PL, tem de definir uma estratégia. É um partido em formação. Se, por acaso, houver uma decisão de eleição já para este ano, a minha tese é a de que o PL deve partir para uma candidatura própria. Inclusive para se fazer como partido. Se esse candidato serei eu, ou não, essa é uma questão para se discutir depois, até porque existe grande probabilidade de sucesso no projeto municipal. A Prefeitura de São Paulo está nas cogitações do nosso partido para ser o carro-chefe da nossa campanha deste ano.

Em São Paulo, o sr. é candidato a prefeito, sem dúvida alguma …

Digamos que esse é um cargo a que tenho grande chance de concorrer com sucesso.

O sr., ao que se sabe, já começou a campanha.

Ainda não. Até porque não tenho tido tempo, com as discussões da Constituinte, em horário integral.

O sr., segundo os jornais, já teve conversas com o Antônio Ermírio…

Com ele eu ainda não tive o prazer de conversar sobre a eleição, mas pretendo. É uma pessoa extremamente importante na política brasileira hoje.

Como é que o sr. vê o xadrez da política paulista com vistas à sucessão de Jânio?

Temos de dividir os candidatos entre os que têm viabilidade política e os que têm viabilidade eleitoral. Eu vejo, por exemplo, o Leiva com uma enorme viabilidade política dentro do PMDB, mas tenho dúvidas sobre a sua viabilidade eleitoral. Se bem que isso sempre pode mudar, me parece que a posição eleitoral dele não é nada forte. Já o Almir Pazzianotto, sem dúvida, tem posição eleitoral, mas também uma enorme dificuldade política. Dentro do PMDB. Para o PTB ele só iria se tivesse a legenda garantida — e dentro do PTB, hoje, ninguém garante legenda para ninguém porque as facções são muitas dentro do partido.

Então o sr. está sozinho e com a vitória já à vista?

Não, eu tenho ainda uma dificuldade política. Tenho de formar uma base.

Seriam só esses os candidatos?

Não, a gente tem de ver se o PDT do Brizola vai lançar candidato. Mas dentro do quadro atual, são esses. A minha candidatura ainda tem de passar por um processo de viabilização política. Nosso partido está ainda em formação. Precisamos ainda montar um arco político para viabilizar a candidatura. Em nenhum momento eu estou antecipando como certa a minha candidatura.

Esse arco passaria necessariamente por Antônio Ermírio?

Passa também por ele.

Esse entendimento passaria pela candidatura dele, Ermírio, a presidente ou a governador?

Não conheço os projetos do Antônio Ermírio. O que tenho visto ultimamente são declarações de pessoas que estariam articulando a candidatura dele e ele sofrendo uma espécie de… dificuldade familiar, não podendo por isso assumir uma postura política até agora. Mas não tenho dúvida de que a viabilidade eleitoral dele, para presidente da República, é muito grande.

O sr. naturalmente o apoiaria se ele fosse candidato?

Este quadro ainda não está claro. Não o meu apoio, mas como irão comportar-se os partidos políticos. Vou trazer aqui uma dúvida que me está corroendo: a eleição presidencial viria por uma decisão da Constituinte, mas eu estou com dúvida sobre o andamento dessa Constituinte. Há uma incrível boa vontade de acertar: os grupos não estão radicalizando, o processo de votação está transcorrendo na absoluta normalidade, sem nenhuma interrupção, e veja a série de dificuldades para nós votarmos essa Constituição. Outro dia encrencou o painel. A velocidade de votação está sendo lenta. Não por obstrução. É por deficiência material. Se até maio não tivermos essa Constituição votada, corremos o risco do trabalho de feitura da nova Carta ser perturbado pelas eleições municipais. Temos ai uns 100 candidatos a prefeito no seio da Constituinte. Em maio, vai ser o estouro da boiada, porque todo mundo vai cuidar da sua eleição.

Não vai dar tempo de fazer uma eleição presidencial este ano?

Eu quero eleição este ano, o povo quer, mas estou com dúvida sobre a Constituinte . . .

. . . Quer também eleições este ano?

Não é problema de querer. É poder. Se a Constituinte, até abril ou maio, tiver terminado o seu trabalho, teremos eleição. Caso contrário tudo fica indefinido.

O sr. é a favor dos quatro anos, apesar da maioria do “centrão” ser cincoanista…

Sou quatroanista, já manifestei essa posição várias vezes, e por um motivo muito claro: Sarney é um acidente histórico. Como acidentes históricos foram Café Filho e João Goulart. Ninguém pode dizer que ele não se esforçou para tentar estar à altura do compromisso assumido por Tancredo Neves. Apesar de eleito pelo Colégio Eleitoral, ninguém ousava dizer que faltava legitimidade ao Tancredo. Mas ele recebeu uma procuração pessoal e intransferível. O presidente Sarney, quando assumiu, sentiu o peso da responsabilidade. Ele mesmo falou em quatro anos, porque sabia da grande dificuldade que teria de exercer o mandato de seis anos.

No entanto, depois passou a querer um mandato maior. . .

Ele tentou uma forma de ganhar o respaldo popular, através do Plano Cruzado. Mas tudo foi por água abaixo. Acho que chegou a hora de fazer o pacto que tanto temos adiado. O encontro dos governantes com os governados nas urnas.

Os agentes políticos do presidente não pensam assim. Eles trabalham dia e noite pelos cinco anos.

Essa é a distância entre os grupos de poder e a Nação. Entre o Estado e a Nação. Esses grupos querem permanecer, não em benefício da Nação, mas sim deles mesmos.

 E distribuem benesses da Nação para os seus aliados

Coitado do contribuinte!

Como o sr. analisa essa débâcle moral dos políticos brasileiros?

Esses assuntos estão ficando só mais evidentes. Essa é uma herança muito triste da história brasileira. É o patrimonialismo. O bem público confunde-se com os bens pessoais da elite que detém o poder. Há agora um clima, sem dúvida, de fim de festa. Isso ajuda: “Vamos aproveitar porque está no fim.”

E o sr. acha que o País, com sua difícil situação econômica, pressionado de todas as formas pelos credores internacionais, ainda aguenta um governo que se deixa levar por esse clima de fim de festa?

Eu espero que mudemos rápido o presidente. Se, por algum motivo, nós retardarmos o processo, há o risco de a Nação brasileira buscar um caminho um tanto quanto diferente do Estado brasileiro. O povo está começando a aprender a viver sem o Estado. Mas não quer ser massa de manobra. E nem quer a agitação. Portanto, quem esperar rupturas muito sérias, está enganado. A Nação está com muita maturidade, buscando o seu próprio caminho. Agora: faça eleição para ver o resultado.

Qual é a visão do sr. em relação ao governo Sarney?

É um governo de contrastes, inconsistências e incoerências. Sarney é um presidente muito fraco. Esta é uma grande realidade e não é nada pessoal. Aliás, pessoalmente, ele tem pontos positivos: não é vingativo, nem tem-se mostrado um déspota. Mas ele está recolhido à fragilidade de suas propostas. Quando eu vejo quantos descaminhos, quando eu vejo o dia do anúncio da moratória: um discurso tão fraco, tão frágil, tão mentiroso. A verdade agora se comprova, porque ele volta para o FMI. Não foi um ato de soberania coisa nenhuma, é porque estava duro. O Plano Cruzado: toda aquela bravata, aquela esperança gerada no povo, depois o contragolpe e a realidade: os pequenos empresários, que acreditaram que a ciranda financeira tinha acabado, estão infelizmente, de novo, à beira da insolvência, nesses próximos seis meses. Todos começam a lembrar dos discursos do presidente Sarney na televisão e ele cai no total descrédito. Sarney é vítima da incompetência da estrutura que ele mesmo criou.

Então, é de fato um presidente que não tem mais nenhuma salvação administrativa?

Não. Porque ele não tem credibilidade, tudo que ele fala, e aparece na televisão para anunciar, o povo não acredita. Quando o governante aparece hoje na tevê, o povo desliga e segue seu caminho porque aprendeu a não acreditar mais.

Falemos do futuro: qual deverá ser o perfil do próximo presidente?

Terá de ser um governante que acredite mais na Nação e menos no Estado.

O empresário Antônio Ermírio tem esse perfil?

É um grande nome, mas traz um vício. É o salvador da pátria. O candidato que vem como um super-homem para resolver os problemas pode cair hoje nesta constatação do povo: de que as coisas não vão ser resolvidas por um salvador da pátria.

Ele também tem problemas com os políticos? Sente-se uma certa mágoa em relação ao Antônio Ermírio, porque ele teria maltratado muito os políticos em geral…

Sim, mas isso ainda é contornável. Porque uma coisa é o político e outra coisa o eleitorado. Sabendo que vai ganhar certo candidato, os políticos vêm para ele, ainda que ele não seja bem visto por muitos. Eu gosto muito do Antônio Ermírio, só acho que precisa mudar a sua postura eleitoral, e não propriamente a postura perante os políticos. Ele precisa dizer: “Meu povo, eu confio em vocês: trabalhem, que eu vou procurar não atrapalhar.”

E o Aureliano Chaves?

O Aureliano tem muitas dificuldades dentro do seu próprio partido. O PFL escapou-lhe do controle.

E também é um partido que não se firmou, não é?

Ficou um pouco amarrado ao estado. É importante para o político ter sucesso que ele esteja amarrado à Nação e não ao Estado. O Aureliano teria tudo para se amarrar à Nação. Mas hoje ele está preso, amarrado ao Estado, aumentando a gasolina. Não é popular.

E o dr. Ulysses Guimarães?

Eu acho que o Ulysses, um político que eu respeito muito, para o perfil do presidente ideal que o povo quer, ele já passou do ponto. Embora reconheça nele uma incrível capacidade de conhecer os meandros da política brasileira.

O povo já não votaria num homem da idade dele, seria isso?

Acredito que não votaria, não.

O mesmo se aplicaria ao sr. Franco Montoro?

Sim, e com um adendo: o Montoro tem muito menos conhecimento político do que o Ulysses.

E o senador Mário Covas?

O Mário eu considero um político competente, porém, tropeçou muito aqui na Constituinte. Adotou o perfil radical. E o radicalismo não pega bem para a massa brasileira. Se ele se reciclar, acho que ainda tem muita chance. Ele tem de se reciclar e a oportunidade é agora, quando estamos negociando o texto da nova Constituição. Não pode ficar com a imagem de porta-voz dos radicais de esquerda. Isto não se coaduna com o perfil do líder Mário Covas e também não faz bem para o coração.

Leonel Brizola?

Eu acho que o Brizola tem sido um fantasma promovido com muito capricho para exatamente criar motivo para que não haja eleição.

Promovido por quem?

Por aqueles que querem manter o status quo, pela tirania do status quo. Acredito que o Leonel Brizola, hoje, como político, tem uma grande capacidade nos meios de comunicação. Sobre isto não há a menor dúvida. Mas na luta que vai estabelecer-se para a Presidência sua chance diminui porque não será uma luta entre esquerda e direita, e nem entre situação e oposição, até porque não se sabe direito o que é uma coisa ou outra. Eu acho que se vai estabelecer uma luta do moderno contra o antigo, do novo contra o velho e, para mim, o Brizola é muito antigo. É o passado, não significa a esperança do novo.

O sr. diz que ele não tem penetração popular?

Não. Tudo vai depender do candidato novo e de sua capacidade de comunicação. Se o candidato novo for bom de comunicação, o Leonel Brizola desaparece.

Então ele é um candidato que tem chance?

Sim. Mas só se não tiver um adversário que interprete o novo.

Quem seria o intérprete do novo?

Eu estou acreditando…

Seria o sr. mesmo?

Eu não me coloco, porque estou começando agora, sei muito bem que em política se deve seguir uma carreira passo a passo. Mas pode ser alguém que vá explodir não hoje, mas daqui a dois, três meses. Pode acontecer.

Novo, por exemplo, é o sr. Ronaldo Caiado?

Não acredito que ele saia como candidato. Tem um compromisso com a classe dele e já deixou muito claro isso. E o Ronaldo tem tido muita coerência dentro da sua linha de ação política. Se hoje ele deixar de ser líder classista para se tornar político, perde 90% da força que possui.

Por falar em líder classista, existe um que já saiu há algum tempo e que tem tido sucesso: o Lula. Qual avaliação do sr. da candidatura do Lula?

Eu acho que a candidatura do Lula, sem dúvida, vai fortalecer o Partido dos Trabalhadores a nível nacional. O PT passa a ter uma bandeira, passa a ter um comandante, um condutor. Mas sinceramente, acho que a proposta do Lula, que é a mais radical das que estão aí, esbarra no perfil moderado e conservador da sociedade brasileira.

O sr. acha que a sociedade brasileira tem mesmo um perfil moderado e conservador?

Tem. E isso eu digo com certeza. A sociedade brasileira é uma sociedade de valores e costumes muito arraigados. Ela é uma sociedade que vive o seu dia-a-dia dentro de uma tradição. É a tradição da família, é a tradição do trabalho. A tudo que afronta esse tipo de realidade a sociedade reage.

O sr. estaria dizendo que a proposta do PT não abriga a família nem o trabalho?

Ela assusta.

 O sr. considera que o PT é uma força mais radical, atualmente, do que os partidos comunistas?

Sim, e acho que o PT é o braço não evidente do comunismo. Porque os outros têm o nome, têm a pecha. Já o Partido dos Trabalhadores tem uma posição idêntica a dos partidos comunistas mas não tem o nome de comunista. Essa é a única diferença.

Revista Senhor – Março de 1988

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