A hipocrisia é a filha bastarda da boa ação com a mentira. E a questão da violência se instala nesse parentesco.
As grandes instituições esbravejam, indignadas contra a violência que tomou conta das ruas, e não percebem que ela está acomodada na sala de visitas das famílias deste fim de século.
Boa ação é a disposição de denúncia; mentira é a vontade de acabar com ela. Aí, a hipocrisia.
A violência das ruas é a encenação pública de um script que a todos os momentos se ensaia dentro da vida pacata do homem comum. A brutalidade do sentimento humano ganhou glamour. A vitória da força bruta é um produto da moda. O choque da estupidez física virou objeto de consumo.
A literatura em quadrinhos que bate e arrebenta, o vídeo game que espirra sangue, o brinquedo eletrônico que cospe fogo, o desenho animado que ensina a matar, os filmes, telejornais policiais, o sadismo de programas de auditório, diversos produtos, enfim, que tanto lucro dão a quem produz, e satisfação a quem consome.
Tudo isso ao seu lado. Aí, juntinho de você, comodamente instalado em sua sala de visitas.
Neste fim de século, ficou chique ser malvado. Charles Bronson, com seu charmoso desejo de matar, está substituindo o símbolo que o homem de Marlboro foi para a geração de 40. A virilidade que um cigarro nas mãos transmitia está se transvestindo na potência e no estrago que um bom tiro de pistola pode fazer na cara de alguém.
Quando os fenômenos são explícitos demais, vale a pena refletir sobre eles.
Há muito a sociedade vem perdendo gradativamente a gentileza entre os seres, a sua simpatia, o seu jeito simples e afável com as coisas. Desde o surgimento do Estado absolutista e da burguesia urbana, os sistemas de mercado foram produzindo um novo sentido da vida. Vagarosamente, as relações do homem com seus semelhantes e com a natureza estão se moldando de acordo com a ética do lucro e do poder. A ciência e a técnica não cresceram apenas pela maioridade da razão, mas foram resposta ao primado da produção, do mercado e do consumo.
Neste fim de século, a crise da sociedade permitiu o aparecimento do mais cruel dos sintomas: o mercado da violência.
A nuvem de Hiroshima pousou sobre o planeta em forma de Guerra Fria. O equilíbrio do poder da morte detonou, entre as grandes potências, a espoleta da fartura na indústria de armamentos.
Os Estados produziam armas, as sociedades as pagavam, e todos dormiam tranquilos, pois achavam estar pagando o preço da paz. Com o lento desmantelamento da Guerra Fria, a grande produção de armas iniciou urna fase de risco. As fábricas da morte precisavam desenvolver o negócio. Guerras regionais começaram a ser incentivadas.
Nada perigoso para as grandes nações. Afinal, o lucro continuava, e o cadáver era dos outros. Aqui e acolá, periodicamente montava-se um showroom de armamentos. Tudo vibrante, ao vivo, via satélite, pela televisão. O bombardeio de Bagdá foi o último grande videogame desses catálogos de destruição.
Só isso não bastou. Era preciso trazer a guerra para o convívio pacífico dos cidadãos. A violência teria que ser uma coisa corriqueira, para evitar o mal-estar da alma.
O melhor mocinho é o que usa arma mais bonita, o herói mais sedutor é o que destrói sem piedade, a criança mais hábil é a que melhor bate com o Kung Fu de seu Super Nintendo.
Os valores da violência estavam colocados dentro das casas para tranquilizar as consciências. Em torno disso tudo, haja negócio! Negócio das armas, negócio dos filmes, negócio dos brinquedos, negócios das televisões, e até o faturamento das campanhas que denunciam a violência.
O supermercado da destruição se instalou na alma da sociedade.
Pensar sobre isso não dói, o que maltrata é silenciar. Cada um de nós deve refletir baixinho sobre até que ponto somos coniventes com a brutalidade que nos cerca. De ingênuos consumidores, podemos estar nos transformando em cúmplices da produção de violência. A hipocrisia pode ser um disfarce da culpa. A culpa, a máscara da cumplicidade.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/05/97