RIO DE JANEIRO – Um empurrãozinho financeiro e uma boa ideia. Empréstimos, que variam de R$ 300 a R$ 15 mil, concedidos pela Agência Estadual de Fomento (AgeRio), têm mudado a vida de microempreendedores de favelas das áreas pacificadas da cidade. Dois quartos de uma casa no Morro da Coroa, em Santa Teresa, viraram o Coração da Coroa, um pequeno hostel; na mesma favela, uma cabeleireira colocou até ar-condicionado no salão que montou na garagem de sua casa; e, no Alemão, um casal conseguiu dar um upgrade num bistrô bem transado, que tem cervejas de mais de 150 marcas especiais.
Com o crédito, a juros de 0,25% ao mês (3% ao ano) e carência de até três meses, empreendedores estão reformando, ampliando ou mesmo abrindo seus primeiros negócios em comunidades com UPPs. É o programa Microcrédito Produtivo Orientado. Nesta segunda-feira, em solenidade no Palácio Guanabana, será comemorada a entrega da milésima carta de crédito. Na verdade, o projeto, que começou em 2012, realizou até 30 de setembro 1.080 operações, que somam R$ 5,5 milhões. A meta, segundo o presidente da AgeRio, Domingos Vargas, é chegar no fim deste ano a dois mil empréstimos, estimados em R$ 10 milhões. Até dezembro de 2014, a agência pretende liberar R$ 35 milhões para sete mil pessoas.
— O programa tem por objetivo incrementar a economia formal nas comunidades com UPPs. No passado, antes da pacificação, havia uma economia muito informal e muito marginal nessas áreas. Com a formalização todos ganham. É possível gerar mais empregos e mais renda, e o estabelecimento comercial, num segundo momento, passa a ter direito a uma série de outras linhas de crédito — afirma Vargas.
Há dois anos, Octaviano Gomes de Araújo —, que nasceu em Iporá, em Goiás, e já viveu em Brasília — chegou à Coroa para trabalhar na implantação da coleta seletiva de lixo. De repente, o estalo: por que não transformar em hostel dois dos três quartos de sua casa, de um andar, na esquina das ruas Baronesa de Guararema e São Miguel? Em dezembro do ano passado, ele pegou empréstimo de R$ 3,5 mil, comprou caixa d’água, melhorou as instalações elétricas e hidráulicas e pintou a casa por dentro. Cada quarto ganhou uma cama de casal e uma de solteiro. Quando há mais hóspedes, a saída é improvisar, usando colchonetes.
— Paguei o financiamento com o que ganhei no réveillon e no carnaval — comemora Octaviano, de 54 anos. — Montei um bom negócio. Inseri meu hostel nos sites de hospedagem. Na Jornada Mundial da Juventude, hospedei 12 pessoas. No primeiro fim de semana do Rock in Rio, recebi oito pessoas. No segundo, dez.
O novo microempresário cobra R$ 50 pelo pernoite de brasileiros. Para os gringos, porém, o valor é US$ 50. Todos com direito a café da manhã e até a brindes: um par de sandálias Havaianas e uma canga.
Como tem recusado clientes por falta de lugar para abrigá-los, Octaviano tem planos de substituir as camas de casal e de solteiro de um dos quartos por quatro ou cinco beliches.
A laje da casa também será bem aproveitada. Bom de negócio, Octaviano está conversando com duas empresas, que deverão custear a implantação e o funcionamento de um espaço zen, com ofurô e banheira de hidromassagem. Mais um atrativo para os hóspedes, que também poderá ser usufruído por pessoas da comunidade.
Outro morador da Coroa, João Henrique Vargas da Silva, de 37 anos, começou vendendo cestas básicas com entrega em domicílio. Mas, quando a casa ficou entulhada, surgiu a necessidade de obter espaço e ampliar o negócio. Afinal, faltava na comunidade um minimercado. Há um ano, alugou uma loja por R$ 900, na Rua dos Coqueiros, em cima do Túnel Santa Bárbara, e buscou ajuda financeira. No ano passado, pegou um empréstimo de R$ 5 mil e comprou frangueira, fatiador e freezer. Este ano, conseguiu mais R$ 11 mil adquirir. O Nossa Cesta Express cresceu.
‘Penso em fazer engenharia elétrica’
Só de cestas — cada uma, com 30 produtos diferentes não perecíveis, dá para uma família de três pessoas por um mês e custa R$ 170 —, ele vende cerca de cem, mensalmente. João conta com a ajuda da mãe e da mulher no minimercado, para poder dividir seu tempo entre o Nossa Cesta Express e o trabalho como taxista.
— Por enquanto, ainda não consigo largar o táxi. Estou tirando cerca de R$ 5 mil líquidos por mês com o minimercado. Aos poucos, pretendo circular menos com o táxi. É muito estressante. Quero ainda ter tempo de entrar para uma faculdade. Penso em fazer engenharia elétrica — revela ele, que tem um casal de filhos, de 14 e 6 anos.
Também na Coroa, a cabeleireira Sandra Mara Satique é só entusiasmo. No Satick Hair — nome do salão que montou, sofisticando o seu sobrenome —, na garagem de sua casa, ela só atende com hora marcada.
— Trabalho sozinha, o espaço é pequeno e não gosto de confusão no salão. Tenho quase 200 clientes, a maioria da Zona Sul. Trabalho até domingo — conta ela, que pensa em contratar uma manicure.
Sandra morava e trabalhava numa vila no Flamengo. Suas clientes a acompanharam quando ela se mudou para a Coroa, há um ano e meio. Ela já está na segunda carta de crédito: uma de R$ 5 mil e outra de R$ 12 mil. Mas a ajuda do marido também é fundamental.
— Ele é taxista. Algumas clientes, ele pega e leva em casa de carro — diz a cabeleireira.
Por um corte, Sandra cobra R$ 35. Aplicação de tintura sai por R$ 25. Se usar tinta da cabeleireira, o preço pode chegar a R$ 80. As escovas vão de R$ 30 (a mais simples) a R$ 100 (a progressiva). Com o salão, a microempresária está faturando entre R$ 3 mil e R$ 4 mil por mês.
— Vou para onde a Sandra for. Cuido do meu cabelo com ela há três anos. Já a conhecia do Flamengo. Quero qualidade e comodidade. Aqui o lugar é tranquilo, bacana, sem problema algum — conta uma cliente que se identificou como Adriana, uma funcionária pública que vai de carro próprio até o salão ou pede os serviços do marido de Sandra.
Vestuário e estética e beleza: setores que mais atraem
O setor de vestuário é o mais atrai os microempreendedores, seguido por beleza e estética, comércio de alimentos e bar e lanchonete. Há postos fixos da AgeRio nas comunidades, e funcionários da agência percorrem as favelas para buscar interessados. Para obter crédito, o empreendedor deve ter um fiador. Caso não consiga, é possível formar um grupo, de três a dez pessoas, e cada uma será fiadora da outra. O pagamento pode ser em até 24 meses, e a inadimplência é baixa: 0,52% têm parcelas vencidas a mais de 90 dias.
Em junho, Marcelo Ramos Andrade, de 39 anos, pegou um empréstimo de R$ 8 mil para ajudar a melhorar o bistrô que completa um ano em novembro, na entrada da favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, o Estação R&R. Num espaço bem transado que Marcelo montou na garagem da casa dos sogros, o cliente encontra mais de 150 rótulos de cerveja especiais. Não falta nem a belga Deus, que custa R$ 250. No dia 12, Marcelo está organizando a Festa da Paulaner (a famosa cerveja de Munique) no seu bistrô, para lembrar a Oktoberfest. Ele pretende ainda lançar a cerveja do Complexo do Alemão.
Quem vai ao Estação R&R encontra campeões de audiência como bolinhos de costela, de arroz e de feijoada. Por R$ 40, come-se um filé aperitivo, ao molho madeira, com tiras de aipim e bordas de queijo, coberto por pimenta biquinho e salsa, servido em chapa fumegante. O bistrô funciona de quinta-feira a sábado e tem música ao vivo.
— O meu bistrô vai bem, mas não gosto de falar de valores. Tem ar-condicionado e Wi-Fi. É um bistrô de qualidade, como outros do mundo. Estou pensando até em sair do emprego para me dedicar totalmente a ele — revela Marcelo, que trabalha numa empresa de telefonia.
Que o diga o casal Orlando Barros de Oliveira, de 55 anos, e Anamaria Montes, de 50, que saem do Recreio para frequentar o bar. De 15 em 15 dias estão lá.
— É um lugar muito bacana, que tem muito gringo. Agora, o Alemão é uma tranquilidade. Ainda encontro, com facilidade, lugar para estacionar. Minha mulher, que não bebe, fica encarregada de dirigir.
De tão badalado, o lugar foi palco, na noite da última quinta-feira, da abertura da sétima edição do Festival Sud de France, com novos vinhos do Sul da França, que vai até o dia 20, em 162 estabelecimentos de Rio, Niterói e Itaipava. Pela primeira vez, um espaço em uma favela integra o roteiro de participantes. O sommelier brasileiro Rogério Rebouças, idealizador do evento e radicado na França, esteve à frente da degustação no Alemão:
— Trouxemos um pouco do sabor da França e apresentamos opções de vinhos que podem ser facilmente encontradas no Brasil, acompanhando bolinhos de feijoada, por exemplo. É preciso saber que um vinho francês vindo da região do Languedoc pode custar a partir de R$ 20. Todos nós, aqui no Alemão, podemos saber mais sobre os sabores do Sul da França, conhecendo um de seus vinhos. Queremos tornar popular por aqui uma prática que é comum na França. Lá, é possível pagar por taças de um bom vinho menos que pagaríamos por uma lata de bebida industrializada.
Uma estamparia dentro de casa
Morador da Rocinha, Antônio Evaldo Farias Andrade, de 43 anos, optou pela estamparia. Vive com a casa lotada de camisas, bonés e uniformes de empresa. No mês passado, estampou mais de 300 peças.
Antônio trabalha com estamparia há 15 anos, mas não tinha recursos para acompanhar o mercado. Há cerca de um ano e meio, pegou o primeiro empréstimo, de R$ 5 mil, e comprou um plotter de recorte (máquina que corta o papel no formato de seu desenho no computador). Já quitou e vai atrás de outro crédito, no mesmo valor. Agora, pretende adquirir impressoras coloridas a laser e fotográfica.
— Tenho um miniescritório em casa. Vou até o cliente, se ele me chamar — diz Antônio, que, com o novo negócio, ganha entre R$ 2 mil e R$ 3 mil.
E ele ainda tem que dividir o trabalho na estamparia com o de taxista:
— Fico das 9h às 16h na loja. Pego no táxi às 17h, 18h, e vou até 1h.
Mais uma moradora da Rocinha, Tereza Domingos da Cruz tem um boxe com artigos de perfumaria no camelódromo da favela, há quatro anos. Para comprar mercadorias, pediu dois empréstimos, ambos de R$ 3 mil. O último ainda está pagando, em 15 prestações. O marido, desempregado há dois meses, passou a auxiliá-la no boxe.
— Funciono 24 horas por dia. A minha sobrinha vinha me ajudando. Agora, meu marido também está trabalhando com a gente — revela ela.
Já Regina Maria Nogueira de Carvalho criou o Sacolão dos Amigos, no Jacarezinho, há 22 anos. Foi para ajudar na reforma do estabelecimento que, há cinco meses, ela pediu um empréstimo de R$ 8 mil. No sacolão trabalham também o marido e o filho de Regina. São tantos fregueses que a família precisou contratar três funcionários para repor a bancas.
— O meu sacolão é o melhor que tem. Tudo é muito organizado. Temos até ar-condicionado. Buscamos as mercadorias de madrugada no Ceasa. Sábado e domingo chega a fazer fila — conta Regina.
O aposentado Salvador Pinto de Souza, de 73 anos, e sua mulher, Neuza Maria Alves de Souza, de 60, também se orgulham do negócio que começaram há cinco anos e conseguiram melhorar recentemente com dois empréstimos, de R$ 1.500 e R$ 2 mil. Por encomenda, o casal faz feijoadas, salgados e bolo.
— Encomendam feijoada para 50 pessoas e eu cozinho para 80. Sempre faço mais um pouco. Quem quiser ter o privilégio de comer a feijoada feita pela dona Neuza e o seu Salvador é só perguntar onde é a casa do velho encrenqueiro, na terceira estação do plano inclinado — brinca Salvador, que é de Magé e foi morar no Dona Marta aos 14 anos, onde constituiu família. — Não é por me gabar não. Mas a minha feijoada é a melhor. Faço tudo separado, o feijão, os salgados. É R$ 25 por pessoa.
Fogão industrial, ele já tem. Agora, quer comprar cilindro, fritadeira e forno. E pensa em tomar um novo empréstimo.
Fonte: O Globo