O presidente do Sistema Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Guilherme Afif Domingos, frequenta as mais importantes rodas do poder, há mais de quatro décadas. Ele tem a habilidade de transitar entre PSDB e PT como nenhum outro político, pois já foi vice de Geraldo Alckmin (PSDB) no governo paulista entre 2011 e 2015, antes de se tornar ministro da Micro e Pequena Empresa do governo Dilma Rousseff (PT), entre 2015 e 2016. Apesar dessa desenvoltura política, as batalhas travadas por Afif nem sempre são vencidas com facilidade. A mais recente disputa é a criação de um Refis para as empresas optantes pelo regime do Simples Nacional, que o colocou em rota de colisão com os ministérios econômicos, em especial, o da Fazenda. “O Refis, mais uma vez, foi feito para as grandes corporações”. Nesta entrevista, ele fala ainda de concentração bancária, reforma tributária e qual deveria ser slogan do próximo presidente.
DINHEIRO – O Sebrae tem feito pressão sobre o Planalto e sobre o Congresso para reverter o veto de Michel Temer ao Refis das Micro e Pequenas Empresas?
GUILHERME AFIF DOMINGOS – Na terça-feira 20, tomamos um café da manhã no Congresso Nacional. Havia mais de 100 entidades representadas. Estamos coordenando essa comunicação. Isso foi fundamental para que a pressão fosse sentida pelos parlamentares, praticamente, no primeiro dia de atividade legislativa do ano. E, sim, colocamos como prioridade na pauta a derrubada do veto presidencial ao Refis dos Pequenos, como estamos chamando.
DINHEIRO – O senhor sabe qual o motivo que levou Temer a vetar esse Refis?
AFIF – O desejo de Temer era sancionar o Refis. Ele assumiu esse compromisso com as entidades, que foram dar apoio à reforma da Previdência no ano passado. Tocamos no assunto e ele disse com todas as letras: “Eu vou sancionar”. Para surpresa geral, as áreas econômicas do governo ficaram quietinhas durante a tramitação no Congresso. Não alertaram o presidente sobre a necessidade, durante a aprovação, de fazer a provisão orçamentária das possíveis perdas. Deixaram para última hora. Na prática, fizeram uma pegadinha. Deixaram o pé para o governo tropeçar. No último momento, avisaram que se Temer sancionasse, devido à falta da provisão, ele entraria em rota de colisão com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). E, hoje, todos sabem que essa lei causa até impeachment. Isso gerou um temor no presidente. Ele foi levado a vetar. Mas ele mesmo sabe que o caminho para corrigir isso é derrubar o veto no Congresso. Isso vai acontecer até o dia 6 de março.
DINHEIRO – Nesse momento, então, o Planalto não está fazendo uma pressão contrária?
AFIF – O próprio líder do governo no Senado, Romero Jucá (MDB-RR), disse-nos com todas as letras: “Nós não vamos nos colocar contrários à derrubada do veto”. Nas entrelinhas, ele falou que o Planalto é favorável.
DINHEIRO – Por que houve a oposição das áreas econômicas?
AFIF – Sempre é assim quando se trata dos pequenos empresários. Há por todas as áreas econômicas uma rejeição ao regime tributário do Simples Nacional, por exemplo. Eles usam o argumento inconstitucional de que o Simples é um favor fiscal e que gera uma renúncia de tributos da ordem de R$ 80 bilhões por ano. Eles partem do princípio de que, se todas as micros e pequenas empresas pagassem os impostos no volume equivalente ao que as grandes pagam, o governo iria arrecadar mais R$ 80 bilhões. Porém, eles se esquecem de que esse resultado é inalcançável. Todas as empresas do Simples estariam mortas se fossem jogadas dentro do manicômio tributário que existe no Brasil.
DINHEIRO – Mas o Simples é pequeno perto de toda a carga tributária no País…
AFIF – Sim. Mas quem consegue sobreviver a esse manicômio são as grandes empresas, porque elas são monopolistas ou oligopolistas. Ou seja, elas não têm muita concorrência. A grande empresa tem a capacidade de impor aos preços a carga tributária embutida. Ninguém lembra ao falar sobre o preço da gasolina, que sobe há meses, que a carga tributária de 55% é imposta ao cidadão. Apenas uma empresa controla o preço da gasolina. Quando falamos sobre pequenas empresas, essa possibilidade não existe. Por isso, não há como falar de renúncia fiscal, porque o Simples é um regime próprio cuja arrecadação cresceu, no ano passado, mais de 15%. Isso é muito maior do que o crescimento dos impostos normais da Receita. Está claro que o Simples é um sistema muito mais eficiente. Somente ele gerou ao caixa da União R$ 83,809 bilhões, em 2017. [Nota do editor: a arrecadação do governo federal em 2017 foi de R$ 1,34 trilhão, 0,6% acima da de 2016]
DINHEIRO – Como viu o relatório do Banco Mundial, no ano passado, recomendando a extinção do Simples?
AFIF – Esse relatório foi encomendado. Quem encomendou foi um ex-ministro que hoje está no Banco Mundial.
DINHEIRO – O senhor fala de Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda no governo Dilma?
AFIF – Sim. Esse estudo foi encomendado para ser usado como um argumento na discussão e gerar um apoio externo àquele governo para dizer que o Simples era uma renúncia fiscal. [NE: O estudo começou a ser produzido ainda no governo Dilma] Mas acho que hoje o Banco Mundial não tem mais credibilidade para dizer nada.
DINHEIRO – A ajuda do governo aos grandes empresários continua? Ainda há preferências, como na época dos ‘campeões nacionais’?
AFIF – O próprio presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), afirmou que, nos últimos 10 anos, aprovou mais de 17 Refis. São Refis feitos para clubes de futebol, bancos, grandes empresas. Nunca, em todo esse período, foi feito um Refis para micros e pequenas empresas. Eu, particularmente, não gosto de Refis. Acaba sendo uma injustiça com aquele que pagou em dia seus impostos. Mas vivemos em um regime de exceção. Nos últimos três anos, vivemos uma das piores recessões da nossa história. E para esse pequeno empresário cumprir a sua missão de gerar emprego e renda, ele teve que fazer uma opção. Ou pagava o fornecedor e o trabalhador, ou pagava os tributos. Então, o imposto foi atrasado para que ele pudesse sobreviver. Os bancos suspenderam o crédito. Cerca de 85% das pequenas empresas ficaram excluídas do sistema financeiro. Emprestou para o governo e não para a sociedade. Por isso que, nesse período de recessão, os bancos bateram recorde em receitas. E mesmo assim, as pequenas empresas geraram 330 mil novas vagas, em 2017, enquanto que as médias e grandes companhias extinguiram 350 mil postos de trabalho. Isso deveria ser manchete de jornal, mas não conseguimos, porque toda a visão da economia está em cima das grandes corporações e não sobre o Brasil real.
DINHEIRO – As áreas econômicas do governo não olham para as pequenas empresas?
AFIF – O governo central só enxerga os grandes. As áreas econômicas do governo não conhecem o Brasil real. Elas são regidas pela lei dos grandes números. Elas só conhecem quem frequenta gabinete. E quem frequenta gabinete são os grandes.
DINHEIRO – Mas há associações de classe para fazer esse papel.
AFIF – Elas nem passam da porta. O Sebrae está cumprindo esse papel, que não é dele. O Sebrae é um órgão técnico de apoio à micro e pequena empresa. Mas nós tivemos de assumir uma posição em termos de ambiente de negócios, para criarmos condições para o desenvolvimento dessas empresas. A grande é a grande. Ela se vira sozinha.
DINHEIRO – O senhor citou números de arrecadação e emprego. O governo recebe esses dados, certo? E mesmo assim eles continuam a ignorar o setor?
AFIF – Quem faz a separação da geração de emprego entre pequenas e grandes é o Sebrae. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) não traz isso. Ele dá o número global. O Ministério do Trabalho nem se dá o trabalho de fazer essa divisão. Por isso, o Sebrae está fazendo uma coordenação da representação de classe. Ajudamos a essas pequenas empresas a se organizarem através de associações e de cooperativas. Mas é muito difícil. Temos uma distorção muito grande na nossa economia.
DINHEIRO – Quais distorções?
AFIF – Uma grande distorção é a concentração do mercado financeiro. Hoje temos a maior concentração do mundo. Temos cinco bancos que controlam quase 80% dos ativos financeiros. Se colocarmos um sexto, o BNDES, subimos para quase 100%. Os bancos têm redes nacionais de captação. Captam de todos, mas só emprestam a alguns. Na hora de emprestar ao pequeno empresário, como o banco não o conhece, coloca um spread vergonhoso, digno de agiotagem. Basta ver o juro do cartão de crédito e do cheque especial. Até o Banco Central tem vergonha de anunciar os números. E, apesar da queda da taxa básica de juros (Selic), os juros bancários não caem porque não tem competição.
DINHEIRO – Hoje existem fintechs trabalhando sobre isso e tentando oferecer crédito a taxas mais competitivas. Esse movimento pode ajudar?
AFIF – Sim. Não à toa, nós propusemos, e o Banco Central, depois de três anos aceitou, a criação da Empresa Simplificada de Crédito (ESC). O cidadão, na sua cidade, poderá emprestar o seu dinheiro para a atividade econômica local. Ele só poderá emprestar para a pessoa jurídica local. E ele põe a taxa de risco no dinheiro dele. Se ele tem uma poupança, ele recebe 0,5% ao mês. Ao criar uma ESC, ele pode emprestar a 2% ao mês. Isso é quatro vezes mais o que recebe hoje. Isso faz com que o dinheiro gerado na comunidade seja aplicado na própria comunidade em atividade produtiva. Esperamos colocar isso em discussão em um mês no Congresso. O projeto ainda está na Receita Federal porque, a princípio, a Receita queria taxar essas ESCs como bancos. Mas a taxação deve ser a de um CDB. O risco do crédito é do credor. Ele não pode captar dinheiro para emprestar. Queremos criar concorrência no spread.
DINHEIRO – Isso não legalizaria a agiotagem?
AFIF – Agiotagem é o cheque especial. Foi essa distorção dos juros que criou uma agiotagem legalizada. Nos Estados Unidos, há mais de 100 mil bancos. Eles não querem concentração financeira. Eles querem a regionalização. E aqui era assim também. Grande parte dos bancos de hoje são originários das casas bancárias, fundadas no interior. A casa bancária Moreira Sales virou o Unibanco [fundida ao Itaú]; a casa bancária dos Vieras tornou-se o [falido] Bamerindus; a casa bancária de Marília gerou o Bradesco. Tudo começou por meio de casas bancárias com crédito local. A concentração é uma brutal distorção.
DINHEIRO – O que o senhor espera dos próximos anos? A crise passou e estamos realmente em processo de retomada?
AFIF – A gente sempre tem de olhar com otimismo. Mas uma coisa me preocupa. O que o Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, fez. Ele cortou drasticamente os impostos e, se não fizermos uma reforma Tributária para valer e que nos coloque em equivalência, as empresas que estão aqui vão para lá. O Brasil está arrancando a pele de quem está empreendendo. A nossa máquina pública precisa ser enxugada e o sistema tributário modernizado. Nosso sistema é um verdadeiro manicômio. Não adianta falar em retomada da economia enquanto tivermos que correr com esse peso nas costas. Temos de tirar esse peso de quem produz e quem trabalha.
DINHEIRO – Além da reforma da Previdência, a Tributária não deve sair tão cedo…
AFIF – Há quantos anos se ouve falar em reforma Tributária? Há décadas. Mas toda vez que alguma coisa acontece pedem mais impostos. Ou pior. Mudam o caráter do tributo, de imposto para contribuição, para não ter de dividir. As campanhas para a corrida presidencial vão começar e esses temas terão de ser colocados à mesa, até porque não existe política social que dê resultado se não for baseada em geração de emprego e renda. Nossa política atual é abortiva devido às dificuldades que nós colocamos sobre os ombros de quem vai correr a maratona da competitividade.
DINHEIRO – O senhor já decidiu apoiar alguém?
AFIF – Os candidaturas ainda não foram anunciadas. E, para mim, o candidato ideal ainda não apareceu. Acredito que o slogan do próximo presidente deveria ser “o Brasil precisa ser mais Simples”. Eu penso que o Estado deve ser enxugado. Mas, quando falo isso, falo sobre as coisas que nunca deveriam ser papel do Estado. Por outro lado, espero o fortalecimento do Estado no que é papel dele. Investimento maciço em educação, saúde, segurança e infraestrutura. O que não estiver enquadrado nisso, fecha, vende. É preciso um Estado que cumpra a função de garantir a igualdade de oportunidades e a igualdade de direitos.