A semente da corrupção

28 de janeiro de 1995
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Quando estive no Japão, uma das coisas que mais me impressionou foi o alerta que recebi de um amigo: “cuidado, não dê gorjetas!” Lá, elas são uma ofensa.

Na cultura japonesa, gorjeta é uma espécie de suborno, pois a pessoa que realiza qualquer tipo de atividade, inclusive em hotéis, recebe um salário suficientemente digno e justo para tratar a todos com atenção, cordialidade e eficiência.

Os japoneses rejeitam a gorjeta, por entendê-la como uma tentativa de se obter um tratamento diferenciado. Para eles, a qualidade dos serviços é um dever profissional, que não pode ser corrompido pelo suborno. Estes princípios, entre outros, justificam a eficiência alcançada pelo Japão, onde o depósito em dinheiro nos bancos pode ser feito por qualquer cidadão pelos correios.

No Brasil, ao contrário, a gorjeta é o lubrificante que azeita uma burocracia emperrada, mal remunerada e, por isso mesmo, ineficiente e às vezes corrupta. Verdadeira instituição nacional, ela é também o passaporte para estacionar carros em vias públicas, ter direito a um bom tratamento no restaurante ou no barbeiro. Sem falar nas famigeradas listas de Natal do lixeiro, do entregador de jornal, do carteiro, etc.

De contribuição voluntária passou a ser compulsória. E quem não contribui está condenado a ter um tratamento diferenciado o resto do ano. Mais do que uma forma de compensar o baixo salário, o assalariado considera a gorjeta uma condição para que possa exercer seu dever com dedicação, cortesia e profissionalismo. Aí está a perversão que ofende os japoneses, mas equivale a uma regra social entre os brasileiros.

O pior é que, depois do advento do Real, perdemos a noção do dinheiro e, consequentemente, da gorjeta. Um manobrista de restaurante em São Paulo trata com desprezo o cidadão que lhe oferece uma moeda de um real, valor usual de uma gorjeta nos Estados Unidos e em países europeus. A praxe no Brasil, me comunicaram, é dar 5 ou 10 reais.

A sadia repulsa milenar dos japoneses pela gorjeta é acompanhada por excelentes salários, o que permite reduzir a tentação do suborno. Aliás, os dekasseguis (brasileiros que vivem e trabalham no Japão) suportam o trabalho pesado porque o salário compensa e lhes permite acumular uma poupança anual, entre os 170 mil patriotas que lá estão, de dois bilhões de dólares.

No Brasil, insistimos em sobretaxar a mão-de-obra com encargos excessivos, transformando o salário num ônus pesado para quem paga e num pesadelo, porque insuficiente, para quem recebe. Com isso, abrimos o campo para a suplementação “por fora” em forma de propina ou gratificação, criando a justificativa para o instituto do suborno, que contamina a nossa cultura.

Ainda agora estamos assistindo às dificuldades do novo governo em selecionar bons profissionais para ocupar cargos estratégicos, porém mal remunerados. Quem aceitar um cargo nos altos escalões, sob as atuais condições salariais, ou é herdeiro de fortuna ou vai viver passando listas. Esta é a semente da corrupção.

 

Publicado no Jornal da Tarde em 28/01/95

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