Fui surpreendido com uma matéria assinada pelo jornalista Jorge Caldeira que, visivelmente engajado em algum agrupamento político, tenta atribuir a mim e a outros constituintes a autoria de determinadas matérias que constam das Disposições Transitórias.
“Não tenho procuração para defender os ex-ministros Delfim Netto e Roberto Campos, dos quais posso discordar em muitas coisas. Mas asseguro que nenhum deles é autor de propostas corporativas ou de atendimento a clientela política especifica.
Quanto a mim, dentro das limitações de uma bancada pequena e tendo os meus 508 mil votos o mesmo peso dos 8 mil votos que possa ter recebido um parlamentar de um Estado pequeno, tenho tentado evitar, ao lado de parlamentares de várias facções, a introdução de autênticos “trens da alegria” no texto constitucional.
A velha expressão “pau que nasce torto não tem jeito, morre torto” parece que se aplica a esta Constituição como uma luva, e só nos resta uma esperança que pouca gente percebeu. Em 1993 teremos uma revisão constitucional com o mesmo quórum de maioria absoluta desta Constituinte, que poderá refletir o Brasil novo que surgirá das urnas em 1989.
Votamos uma emenda que garante essa revisão constitucional embora considere pessoalmente que esse dispositivo não deveria falar em revisão daqui a cinco anos, e sim em revisão nos próximos cinco anos, pois assim o presidente, que será eleito por um colégio de 75 milhões de eleitores, terá condições de trazer à luz um novo projeto que a Nova República nos ficou a dever. Lamentavelmente o dia dessa manifestação nas urnas foi adiado para 1989, com o meu voto contrário.
O corporativismo, herança maldita do fascismo que orientou a formação do Estado Novo, lamentavelmente, ao invés de ser banido pela esperança da Nova República, acabou se solidificando no texto da nova Constituição.
A Nova República deveria trazer um grande projeto que colocasse o país alinhado com as nações de primeira grandeza do mundo. Mas o acidente histórico ocorrido em seu limiar sepultou as perspectivas da transição, a qual acabou se transformando numa autêntica “transação”. Pois para equilibrar o poder político, tentou-se conciliar os interesses dos que já viviam nas costas do Estado com os interesses daqueles que se candidatam a esse confortável posto.
Hoje não sabemos o que é oposição e o que é situação. Nem o que é realmente esquerda ou direita. Porque a direita, como é classificada a situação, “mamou” até agora. E a esquerda, classificada como oposição, começou a “mamar” daqui para a frente. Mas ambas unidas no desejo de manter intacta a estrutura corporativista do Estado brasileiro.
A ausência de um projeto nacional transformou a Assembleia Nacional Constituinte no palco ideal para os projetos das várias corporações que integram o Estado ou que sobrevivem ao seu redor. Discutiu-se pouco sobre a educação no Brasil. Na verdade, a grande discussão foi sobre a participação nas “tetas” da educação. O próprio slogan “Verbas públicas para a escola pública” demonstra que a discussão ficou mais em torno das verbas do que dos grandes problemas da educação no país. O mesmo ocorreu no campo da saúde. A busca de um sistema único para criar um caixa único a ser descentralizado posteriormente, busca não a municipalização da saúde, mas a sua prefeituralização em que os possíveis benefícios serão trocados por fichas partidárias dos partidos dominantes, a exemplo do que já vem ocorrendo com a casa própria.
O problema da Justiça acabou se transformando numa verdadeira batalha campal das corporações que a compõem: Magistratura versus Ministério Público.
Na Ordem Social, a mais importante vitória foi a da burocracia das corporações sindicais patronais e de trabalhadores, mantendo a unicidade e o imposto sindical, herdados do fascismo corporativista.
Na Ordem Econômica, os tradicionais cartórios empresariais, escondidos sob a bandeira do “interesse nacional” mobilizaram competentemente suas bancadas para que seus interesses lá fossem inseridos. E assim por diante, até chegarmos à famigerada Disposição Transitória que na verdade deveria regulamentar a transitoriedade de pontos no texto constitucional mas que acabou sendo palco, tanto no projeto da Sistematização como no projeto do Centrão, das mais estapafúrdias pretensões do “queromeísmo”, ou da República do “Quero o Meu”, com vários interesses corporativos ali inseridos.
Portanto, os dois textos são resultado das mesmas pressões. E estão eivados dos mesmos vícios. Um deles teria que ser aprovado em bloco, sem prejuízo das emendas e destaques. Vários constituintes, de várias facções, estão atentos aos abusos existentes em ambos os textos, pois a matéria que foi destacada não permanece a não ser por 280 votos positivos.
O artigo do sr. Jorge Caldeira, que não esclarece esses pontos fundamentais, só pode ser recebido como uma agressão gratuita de um repórter que deveria ser mais preciso na explicitação dos fatos e mais isento como profissional.
Publicado na Folha de S.Paulo em 09/06/88.