Uma liderança política revelada pelas últimas eleições, o deputado federal Guilherme Afif Domingos (PL/SP) em entrevista ao O Globo, manifesta sua desilusão com os rumos que toma a futura Constituição. Sua esperança é que os 400 parlamentares que considera marginalizados provoquem uma rebelião que garanta a Constituição desejada pela Nação.
Afif aponta como única saída para o País a convocação de eleições gerais, de Vereador a Presidente, em 1988. Segundo ele, o povo nas urnas seria o único pacto viável que se poderia propor e prevê que Sarney, com este gesto, passaria à História “numa página muito bonita de desprendimento”.
O deputado critica o Presidente por não ter assumido de fato o Governo e não poupa o PMDB por acreditar que o partido majoritário está exclusivamente empenhado em prorrogar sua permanência no poder.
Afif Domingos, empresário de 43 anos que se notabilizou por mobilizar pequenos e médios empresários, nega um projeto pessoal para 88, embora não descarte candidatar-se à Prefeitura de São Paulo. Com o objetivo de honrar os eleitores que fizeram dele o terceiro deputado mais votado do País, em 15 de novembro, quer impedir a aprovação do anteprojeto de Constituição como está, para evitar “a solidificação das corporações que vivem à sombra do estado brasileiro”.
O GLOBO — Qual sua opinião sobre o documento-compromisso do Presidente José Sarney?
Na verdade nós precisamos colocar as coisas hoje muito às claras. A fratura no Governo é uma fratura exposta, prestes a infeccionar. Existe uma luta intestina pelo poder, que muito se assemelha à luta que nós assistimos nos morros do Rio de Janeiro, onde determinados grupos queriam tomar conta de determinados pontos de distribuição. Numa analogia, a grosso modo, a situação é idêntica, porque hoje o patriotismo foi deixada de lado e os grupos estão em guerra aberta pelo domínio dos pontos da máquina pública, sobre os quais querem exercer influência, porque aquilo significa poder eleitoral.
O GLOBO — Quais são as consequências imediatas desse quadro?
Quando olhamos hoje o complexo que instrui o processo na Constituinte, vemos que o povo vai entrar com o bolso nessa brincadeira, porque o que está em jogo na verdade é a manutenção da máquina do Estado como uma máquina de poder politico que tira de todos para manter alguns e distribuir para alguns. Essa é a dura realidade que a Nação, graças abertura política, começa a ver. É uma verdade que vem da Velha República e que a Nova só fez aperfeiçoar.
O GLOBO- Qual é a saída?
Da forma que as coisas estão indo eu vejo o Presidente Sarney numa situação muito difícil. Ele mesmo confessou, quando de sua posse, que não estava preparado para a incumbência à qual estava sendo levado. A Nação deu uma procuração a Tancredo Neves, de repente, Sarney assumiu uma sub-procuração que ele mesmo encarou como um acidente histórico e hoje a verdade está aparecendo. O Presidente Sarney é um acidente histórico como o foram João Goulart e Café Filho.
O GLOBO — Mas o senhor ainda não revelou a saída…
Eu quero até fazer aqui um apelo ao Presidente Sarney. Ele é uma pessoa que tem o sentido da História e ainda tem chance de passar para a História vindo ao encontro da necessidade de um novo pacto e este não é um pacto que passa pelos quartéis. Esse pacto deve passar pelas urnas. A única saída que eu vejo é a convocação de eleições gerais para 1988, porque a manutenção desse quadro pode nos levar muito mais ao endurecimento do regime do que transição democrática.
O GLOBO — Que outra solução o senhor apresentaria?
Não vejo outra saída. Acho que o ideal era que o Presidente Sarney tivesse o equilíbrio necessário para governar. Mas na hora em que a sua sustentação entra em tal processo de deterioração, para evitar um tipo de ação que passe por golpes, nós deveríamos entregar à sociedade o único pacto possível que é o das urnas. Com isso, nós nos anteciparíamos a qualquer tipo de ação daqueles que querem hoje o quanto pior melhor para a sociedade.
O GLOBO — Como o senhor viu a reclamação do Presidente de estar governando sozinho?
O Presidente Sarney sofre agora a consequência de um processo no qual, no passado, tínhamos lideranças políticas que eram teleguiadas por um poder forte. De repente, com a mudança do processo, a força desse Poder Executivo, que ainda é forte no País, entra numa turbulência que exige lideranças fora dos padrões convencionais. Não é a liderança que sabe manusear o caixa do Governo ou a caneta de nomeações. Quando se exige hoje das lideranças uma altivez e um patriotismo maior, nós mostramos a dura realidade da escassez de autênticos lideres, porque, infelizmente, temos falsos líderes criados por um sistema que só fez castrar lideranças.
O GLOBO — A que falsos lideres o senhor se refere?
Todos esses que usam de estelionato eleitoral para enganar o povo. Acho que chegou a hora do povo ajustar as contas daquilo em que foi enganado. Exatamente esses falsos líderes que quiseram vender à nação que a Constituição seria um remédio para todos os males, que quiseram vender que o Plano Cruzado era a grande solução. Então o povo entrou num processo de crescente descrença de nossas instituições. E essas falsas lideranças serão as primeiras a serem consumidas.
O GLOBO — Qual a diferença fundamental em relação a 1964?
É que em 64 nós tínhamos um quadro de lideranças políticas civis do mais alto gabarito e tínhamos também um quadro de lideranças militares ainda do tempo da guerra, onde o patriotismo e o heroísmo eram palavras chaves. Era o código de honra da formação dos quadros políticos institucionais do País. Mal ou bem tínhamos uma estrutura partidária, que se não era uma estrutura partidária de doutrina, formava quadros dirigentes para o Brasil. Hoje, o reinício do processo democrático, vemos a devastação do quadro político brasileiro que ceifou lideranças em todos os campos, resultando no caos da falta de lideranças. Daí esperarmos que o processo das urnas faça surgir um quadro de lideranças mais autêntico e identificado muito mais com a Nação do que com o Estado brasileiro.
O GLOBO — Como fica o PL diante da proposta de pacto do Presidente Sarney?
Eu tenho uma posição que já defendi perante o Presidente do partido e os companheiros de bancada. Um partido como o nosso que nasce agora é um partido que tem de estar totalmente identificado com a Nação. Na medida em que hoje existe um fosso muito grande entre o Estado e a nação, qualquer aproximação com o Governo seria uma aproximação com o Estado e um distanciamento com a Nação. Entre o Estado e a Nação, ficamos com a Nação porque não precisamos de empregos públicos para fazer política.
O GLOBO — Como o senhor encara as últimas críticas do ex-Presidente João Baptista Figueiredo ao Presidente Jose Sarney?
Acho que o Presidente Figueiredo, que eu respeito muito porque foi Presidente da República, precisava ser coerente com a sua declaração que pedia para que o povo o esquecesse. Desse jeito o povo não vai esquecê-lo nunca.
O GLOBO — Como o senhor interpreta a posição do PMDB nessa crise e frente ao pacto proposto pelo Presidente Sarney?
Na verdade o PMDB está buscando uma forma de prorrogar a sua participação no poder. Ele quer uma fórmula dúbia em que participa e não participa. Ele quer todos os cargos e se manter numa posição ambígua de oposição. Quero lembrar que o próprio Relator da Comissão de Sistematização da Constituinte disse que iria contar a verdade sobre quem introduziu o dispositivo que prevê o retorno do Colégio Eleitoral ou eleições indiretas para os cargos executivos do País. Portanto, está na cara que existe uma manobra prorrogacionista do partido que era de oposição e que hoje não quer assumir o Governo, participando do próprio Governo. Ele precisa mostrar a verdade à sociedade. Chega de mentir. Foi essa mesma cúpula que tentou passar à Nação a ideia de que a Constituinte seria o remédio de todos os males.
O GLOBO — O que muda no País com a nova Constituição?
Com esse projeto que aí está creio que teremos a solidificação das corporações que vivem à sombra do Estado brasileiro e quem vai pagar a conta disto é a Nação. É só olhar o projeto na área tributária, distorcido de sua concepção original. Dele participou o lobby dos dirigentes de Estado do Brasil, mas o lobby do contribuinte, de quem paga a conta da orgia e da corrupção nacional, esse não teve nem vez, nem voz. Acho que o projeto que está aí não dá muita esperança de mudança.
O GLOBO — O senhor acredita na mudança dos rumos da Constituinte?
Eu só espero que uma grande parcela de constituintes que hoje estão marginalizados do processo, que não participaram dos conchavos de cúpula que acabaram por orientar o projeto do Relator, que já confessou ter sofrido pressões muito sérias, provoquem uma rebelião para que a Constituinte possa vir de encontro à Nação contra a estrutura do Estado brasileiro. Os marginalizados são mais de 400 parlamentares.
O GLOBO — O que o senhor pretende fazer para que isto aconteça?
Ninguém tem o dom mágico de provocar uma rebelião. O que nós podemos é ser intérpretes de algo que talvez esteja oculto e que só podemos fazer brotar. A pregação eu faço, agora a ação depende muito mais da reação dessa correnteza. Se não houver reação, serão consumidos pelo maçarico da crise que vem por aí.
O GLOBO — O que acontecerá se o projeto for aprovado como está?
O País continua. Mas com a aprovação desse projeto ele vai mergulhar muito mais na informalidade que é o Brasil real. O que vai acontecer é que, dos 53 por cento, dos 53 milhões de pessoas que compõem a população economicamente ativa, passaremos a 70 por cento de trabalhadores marginalizados, ou seja, sem acesso aos direitos e garantias a serem previstos na Constituição.
Publicado no O Globo, em 18/10/97