A sociedade começa a reagir e a mudar o país

Novembro / Dezembro de 1991
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Uma queda-de-braço entre a sociedade e a Nação. É essa a crise que o empresário Guilherme Afif Domingos vê no Brasil. Mas é perfeitamente possível vislumbrar um desfecho positivo para as dificuldades atuais, desde que se consiga enxergar o outro lado do rio, onde há terras férteis, o clima é bom, há enorme espaço a ser ocupado. Feita a travessia do Rubicão, pondera Afif, teremos um projeto para a Nação, com um Estado forte para desempenhar satisfatoriamente suas três finalidades principais: investir pesado para assegurar igualdade de oportunidades, os direitos da cidadania, infraestrutura básica para promoção do desenvolvimento urbano e rural.

Diretor Lojista – Por que, aparentemente, o Brasil não tem jeito?

Guilherme Afif Domingos – Claro que tem jeito. Só que estamos passando por um processo de profunda transformação. Cise. Crise que nada mais, nada menos é do que um período de transição. Não existe criação sem dor.

DL – As pessoas percebem, têm clareza disso?

AFIF – Elas passam a ter consciência e clareza disso na medida em que a crise se aprofunda. Hoje, sou otimista. Todo mundo está pessimista. Eu não, estou otimista, porque a crise é um fator de conscientização. Quanto mais a crise se agravar, maior será a possibilidade de encontrarmos uma solução que tire as pessoas do comodismo. As pessoas vão à luta. As pessoas na iminência de perder o emprego se tornam muito mais ativas na briga.

DL – Crise é transformação. Então, qual é a cara do novo que começa a surgir por aí?

AFIF – Estamos notando as transformações há alguns anos. Veja que durante um bom tempo, tínhamos uma ideia, um sonho, uma miragem que foi o modelo do “Brasil grande”, sedimentado na década de 60 com a própria Revolução. A ideia do “Brasil grande” era uma miragem das grandes estruturas. O país tinha que crescer com as grandes empresas, os grandes projetos. Ignorava-se que o grande é a somatória dos pequenos. Isso foi a ponto de ser feita uma verdadeira lavagem cerebral. Por exemplo, o aluno de uma escola, para ter sucesso, tinha que trabalhar numa multinacional, numa grande empresa estatal. Jamais se transmitia a ele a ideia de que poderia vencer trabalhando por conta própria, acreditando em si. A ideia foi sempre a da sociedade do emprego estável, da grande aposentadoria.

DL – Nada que tivesse muito a ver com nossa realidade, nossas necessidades?

AFIF – Sim. Nós criamos um modelo que não partiu da realidade brasileira.

DL – Uma fantasia?

AFIF – Não digo fantasia, mas foi um modelo de grandeza que o mundo percebia que estava fazendo água, e nós começamos a sedimentá-lo. Só que para financiar tal modelo não tínhamos poupança interna, fomos buscar financiamento com a poupança externa de empréstimo. Se tivesse sido a poupança externa de risco, teríamos chances de ser um modelo mais eficiente, já que os recursos só entrariam com perspectivas de retorno, os investimentos teriam sido feitos com seletividade muito maior. Da forma que foi feito, não percebemos que estávamos tendo crescimento, mas não desenvolvimento integrado porque o modelo era mais ou menos difícil, extravagante. Só que a mentalidade geral era a busca do emprego estável. Por isso, a primeira crise que oferecemos, e muito forte, foi a de 1981/82. O Brasil não conheceu, em todo o seu processo de industrialização, um período de recessão que gerasse desemprego em massa. Nunca tínhamos sofrido isso. De 1950 a 1980 só experimentamos índices positivos de desenvolvimento, nenhum negativo, O que vimos foi gente no olho da rua, e a primeira grande frustração nacional.

DL – O que ela representou?

AFIF – Essa frustração que foi a primeira crise de 81 trouxe um ensinamento. A partir daí, o operário da fábrica do ABC, que estava dando duro e perdeu seu emprego, ficou desempregado, mas não desocupado. Com o dinheirinho da indenização comprou uma Kombi velha, ou uma Variant, ou um Corcelzinho daqueles dos anos 70, 60, e foi vender sapato, camisa, meia, na porta da fábrica onde trabalhava. De repente, ele começou a perceber que sem registro, sem Previdência, sem aposentadoria, ganhava mais do que quando era operário da fábrica.

DL – Esse cidadão não passa a ser visto como marginal?

AFIF – Sim, mas o que quero mostrar é que aquilo rendeu frutos. Desde que ele foi trabalhar na clandestinidade – e ele não é um marginal por vocação marginal, mas por acidente, porque na hora em que for legalizar o seu estabelecimento, está frito. Não consegue sobreviver. Há casos como o de um ex-vice-presidente do Sindicato do Lula que foi preso em 1978 e perdeu o emprego. Com o dinheiro, abriu um negócio que se transformou depois num supermercado. A mudança que aconteceu nesse líder sindical é que antes ele era condicionado a ter ódio do patrão, e depois que passou a dono do supermercado, passou a ter ódio do fiscal porque percebeu quem é que estava tirando o dele.

DL – O que acontece, então?

AFIF – Começa um processo de conscientização da sociedade: primeiro, a miragem não existia. Segundo, a estabilidade também não, porque era fruto da estabilidade de uma economia em crescimento. Na hora em que essa economia entrou em crise, ele foi para o olho da rua e se viu na rua da amargura. Mas aí, ele despertou para uma atividade, percebeu que podia ter sucesso, que ser empresário não era negócio tão intangível como foi vendido para ele. Empresa para ele era a Ford, General Motors, Petrobrás. Aí ele se deu conta que podia ter um empreendimento próprio, seu. E, o melhor: um operário da fábrica que era seu amigo começou a perceber que o amigo estava progredindo; à noite, quando ia deitar com sua mulher, esta o cutucava: você viu o fulano, viu como melhorou de vida? Você está aí, gramando atrás de uma máquina, ele foi lá porque foi para o olho da rua, arriscou e está dando certo. Isso começou a gerar uma reação em cadeia em tal proporção que não foi percebido pelas nossas cúpulas, pelas nossas elites.

DL – Essas mudanças são mensuráveis?

AFIF – São. Foi feita uma pesquisa quando eu estava trabalhando em cima do projeto de microempresa, que justamente sugeria uma liberação e uma legislação que pudesse beneficiar esse povo na sua busca de sobrevivência, que é um fenômeno nacional. O que aconteceu é que a mentalidade do povo começou a mudar, começou a se tornar tangível ele trabalhar por conta própria. Minha votação parlamentar foi inesperada, o que aconteceu justamente porque toquei no sonho do brasileiro. O sonho do brasileiro de São Paulo no meio da década de 80 não era mais a casa própria, era ter um negócio próprio, ser dono do próprio nariz, trabalhar na ’empresinha’ familiar, o que começou a se tornar tangível para a massa operária. Tanto é verdade que recentemente a Folha fez uma pesquisa no ABC e descobriu a vocação liberal do operário do ABC.

DL – O que é essa vocação liberal do operário do ABC?

AFIF – É exatamente essa mudança de mentalidade. Está na cabeça dele. Hoje, está atrás de uma máquina, mas se lhe for dada uma oportunidade de trabalhar por conta própria, vai tentar. Isso está na cabeça da grande maioria, daí o PT tem que rever profundamente seus conceitos de capitalismo, de mercado, porque estamos começando uma nova revolução. Só que ela não aconteceu porque temos ainda o tacão do Estado que funciona como um aborto permanente de qualquer ideia do nascimento de capacidade empresarial.

DL – Que tipo de reação ainda falta?

AFIF – A reação contra o político, contra a empresa estatal, contra o funcionário público, é uma reação da sociedade contra seu espoliador. Quando se fala em corrupção no poder, corrupção no Estado, o povo fica revoltado. O povo hoje está com uma postura anticorrupção muito clara, porque começa a se conscientizar que o poder rouba o seu esforço. Isso não é novo. E até bem antigo. Aliás, de novo só há o que foi esquecido. Aqui, hoje, a pretexto de cuidar do povo, o que temos é o Estado tirando seu dinheiro, tributando a carne, a bebida, o divertimento…Porque quem paga imposto, minha gente, é o consumidor. É um erro, agora, taxar ainda mais a empresa, porque amanhã o aumento do imposto está em cima do bem ou serviço produzido. Enquanto não tivermos esse tipo de consciência – e isso as elites procuram esquecer de ensinar ao povo, tirar de sua cabeça -, a do tax payer, a de que eu pago, eu exijo.

DL – Por que não se reage a esse estado de coisas?

AFIF – Os veículos de reação da sociedade estão muito mais a serviço do golpe das elites do que da libertação do próprio povo.

DL – Essas não são ideias de subversivo?

AFIF – Sou subversivo, sempre fui. Subversivo, não, estou é do lado do balcão, porque quem tem essa mentalidade é o homem do balcão, que está na ponta, com o consumidor. Quando hoje falam que existe a economia informal, nada mais, nada menos é do que a sonegação. Ninguém sonega porque quer. Sonega para sobreviver. Num país onde tiramos o poder aquisitivo do povo e não diminuímos o tamanho do Estado na proporção em que diminuímos aquele poder aquisitivo, o que acontece? Na hora em que se quer aumentar a carga tributária…

DL – … quem vai pagar?

AFIF – Acabou, não paga. O que é a sonegação? É o comerciante no balcão percebendo que a mercadoria não pode ser vendida por aquele preço porque o consumidor não consegue pagar. Então, começa o processo de adaptação do preço, no balcão, à realidade.

DL – O próprio governo divulgou dados indicando o aumento do não-pagamento de impostos?

AFIF – Ou você deixa de pagar, ou deixa de registrar. Isso eu falo com toda tranquilidade porque estou falando para um povo que sabe do que estou falando, e que muitas vezes é taxado de safado, bandido, sonegador. Não. Ele é um adaptador do preço da mercadoria à realidade do poder aquisitivo do consumidor. O grande aliado do consumidor é o lojista. E ali no balcão que ele faz o acerto porque se ele não tem preço, não vende.

DL – É por isso que na nota fiscal é colocado um preço “de promoção”, outro não, mais alto?

AFIF – É claro. Se não, não vende. E pode ser menor ainda se for sem nota. Esse é um instituto que você segura. Vai crescer. Começo a dar risada com a discussão estéril que está acontecendo hoje em Brasília: o ajuste fiscal com aumento da carga tributária. Não vai acontecer. Ponto.

DL – Afinal, quando vamos parar de patinar sobre os mesmos problemas não resolvidos?

AFIF – Esta é uma crise que não está acontecendo só no Brasil, está presente tanto na sociedade capitalista como na socialista…

DL – Mas há pouco tempo, na reunião do Fundo Monetário, em Bangcoc, os soviéticos que compareceram pela primeira vez à uma reunião do FMI, fizeram questão de ressaltar que o que está acontecendo no Brasil é exatamente o que eles não devem fazer em seu país. Ao que estavam se referindo?

AFIF – Que aqui não promovemos o ajuste. Ainda como parlamentar, fiz uma análise dos atuais problemas brasileiros, tomando como base um trabalho do historiador Férnand Braudel, francês, falecido há uns quatro anos – “Cinco Séculos de Civilização e Capitalismo” – no qual analisa os movimentos das sociedades, principalmente nos países da bacia do Mediterrâneo. Ele diagnosticou a crise que estamos vivendo, cuja solução não virá antes do ano 2.000.

DL – Mas o ano 2.000 é daqui a pouco!

AFIF – Sim, mas esse processo que estamos vivendo ocorre em escala mundial. O pêndulo político no mundo vai ficar oscilando da esquerda para a direita porque não se trata de uma crise da sociedade, mas do Estado. Vivemos hoje no mundo uma crise de poder do Estado – ela está no topo da pirâmide, nem na base, nem no meio.

DL – Como é que se avalia o caminho que está sendo seguido?

AFIF – Temos dois Brasis muito claros, o desenvolvido e o subdesenvolvido, que exporta seu subdesenvolvimento para as periferias do centro desenvolvido. Por que esses dois Brasis? O subdesenvolvido é o Brasil Colônia, um país de cultura extrativa, não de cultura produtiva. O português, como colonizador, veio para extrair. Trouxe o negro e misturou-o com o índio, todos vivendo no clima tropical. Por que eles não têm mentalidade produtiva? É uma questão de clima. Embora aqui não tenhamos inverno, a natureza me dá tudo: o rio com o peixe, o fruto na árvore, sem qualquer rigor climático. Já o centro-sul, para onde vieram os primeiros imigrantes em substituição à mão-de-obra escrava, procediam de clima temperado. Essa cultura de clima temperado em suas primeiras migrações para o Novo Mundo fez os Estados Unidos e o Canadá, há 200 anos. Há um século, chegaram ao sul da América do Sul, sul da África, Austrália e Nova Zelândia.

DL – Essa não é a teoria do green belt?

AFIF – Nada disso. O que estou querendo mostrar é que o imigrante procedente de climas temperados tinha uma cultura arraigada segundo a qual senão trabalhasse no verão, se ferraria no inverno, porque passaria fome. Vieram para cá e montamos a base, a agricultura, e tivemos um alicerce muito sólido: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, parte do território mineiro, mais tarde parte do Mato Grosso do Sul, exatamente com colonização europeia. Fizemos o alicerce de nação agrícola. Isso foi até 1950. Quando veio o Juscelino, em 1955, ele disse: vamos abrir o país para o capital de risco, temos que nos industrializar. Para onde veio a indústria? Para onde havia agricultura. O primeiro ciclo de JK foi industrial, o segundo, programado para 1965, seria de cinco anos de agricultura, baseada na ocupação do Brasil Central e dos vales úmidos do Nordeste.

DL – Mas fomos interrompidos…

AFIF – A Revolução quebra isso e volta aos conceitos de 30, o comando pelo Estado, e a agricultura deixou de ser prioridade. AÍ, veio a história do grande e esquecemos o ciclo do desenvolvimento agrícola. Nesse período, tivemos uma mudança muito abrupta do campo para a cidade grande. Teríamos tido um desenvolvimento muito mais equilibrado do que o que aconteceu com a vinda para a cidade grande, que é o drama do Brasil para o século XXI. Só que, de vinte anos para cá, desde 70, os japoneses, porque não querem depender dos Estados Unidos para se alimentar, investiram a fundo perdido em tecnologia para o cerrado. E desenvolveram. Explodiu com a soja. Aí, o gaúcho, o catarinense, o paranaense, o paulista e o mineiro vieram para o Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Pará, Maranhão, oeste da Bahia, vales úmidos do Nordeste. Começou a invasão.

DL – Amarela?

AFIF – Japonesa, alemã… E qual anova revolução que estamos fazendo? A cultura de clima temperado adaptou a agricultura de clima temperado ao clima tropical. E descobriu que, se trabalhar no inverno e no verão com a mesma intensidade, ganha o dobro, ou o triplo. O que é diferente dos Estados Unidos ou da Europa, que só têm uma safra. Só resta no mundo uma nação de clima tropical com o potencial de explodir a curto prazo: somos nós. Só que vamos precisar de um segundo ciclo migratório: o primeiro, há 200 anos, foi para o hemisfério norte; há cem anos, o segundo veio para cá; o terceiro não tem para onde ir, que a Europa não tem onde colocar. É hora de começarmos um projeto de colonização.

DL – Quem está tratando disso?

AFIF – Falou-se muito rapidamente quando veio aqui o chanceler alemão, mas não entraram na essência da questão. E temos dois grandes aliados que, por coincidência, são as duas grandes potências financeiras do mundo: Japão e Alemanha. Os japoneses, há muito tempo de olho na parceria para o desenvolvimento da agricultura brasileira – eles não querem mais ficar dependendo dos norte-americanos para comer. Eles já estão cutucando muito de perto os Estados Unidos com a concorrência do automóvel, lá dentro. Precisam de um parceiro porque, de uma hora para outra, pode vir a vingança: ou vocês param, ou cortamos a comida. A Alemanha não tem como absorver a população do Leste e pode fazer parceria desde que, nós, por cima, possamos escoar a produção para a própria Europa, a partir de 92. Temos que ocupar o espaço de nação produtora de produtos primários, mas não exportadora de produtos primários, e sim de acabados – o agrobusiness, a agroindústria, porque não se faz mais colonização sem uma indústria de transformação locada no ponto que se pretende colonizar. O Brasil, hoje, é a nação que mais potencial tem no mundo para acelerar o novo modelo, para ser a grande potência de clima tropical. Aqui, falamos uma mesma língua, temos sentimento de integração nacional. E ainda temos gente falando em separatismo – e aqui vai meu recado para os gaúchos: gente, isso é patrimônio nosso! Está certo que o gaúcho sofre porque está lá na fronteira e é esquecido pelo governo central, ele tem algo como um sintoma de rejeição.

DL – No sul, estão falando em construir um continente, com o Mercosul.

AFIF – Tudo bem, melhor ainda para minha tese, porque o potencial industrial está no centro-sul e no Mercosul. Mas o potencial de explosão de consumo está no norte, nordeste, centro-oeste.

DL – Falamos em perspectivas, projetos, mas como é que fica nosso feijão com arroz, hoje?

AFIF – O processo é de crise, hoje. Vai chegar o momento em que, com seu agravamento, teremos uma solução para a crise econômica – que não é econômica, é política -, já a saída estará numa decisão política do que fazer coma massa falida. Nesse fim de ano, o governo está tentando ainda pegar dinheiro. E não vai conseguir. Estou acreditando que 93 seja um ano de profundas transformações.

DL – E 1992 fica entre parênteses?

AFIF – Não pode ser muito diferente disso que está aí.

DL – Como vamos sobreviver?

AFIF – A partir de 93, quando teremos uma reforma da Constituição, estaremos bem maduros para começar a remover a cruz da estrutura que foi sedimentada em 88. A Constituição de 88 na verdade sedimentou e cristalizou os nossos vícios. Só que a crise vai desmontar isso.

DL – O senhor fala em desmontar o que aí está. Mas alguém vai entregar o que tem de mão beijada?

AFIF – Não se trata de entregar de mão beijada. Não vai entregar. É um braço de ferro entre a Nação e o Estado. Quem vai vencê-lo? Mas não será nada violento.

DL – Qualquer que seja o resultado do braço-de-ferro, não deixará sequelas?

AFIF – O processo está em curso. Hoje, temos coisas e não podemos usá-las. O processo de violência que estamos vivendo é uma verdadeira guerrilha urbana. E a luta pela sobrevivência, e nela não há qualquer ideologia. O indivíduo está indo lá porque é meio de vida, e se é assim é porque há uma organização por trás disso. Quando a economia por dentro não se desenvolve, a economia por fora toma corpo, e ela pode ser lícita ou ilícita, mas ambas são por fora. E agora volto ao início de nossa conversa: mas o indivíduo não se sente um marginal? É um marginal lícito se está vendendo qualquer bugiganga, e é acidentalmente informal. Há também o marginal ilícito, o ambulante vendendo tóxico. Entre uns e outros… É muito difícil ter ética quando não se tem dinheiro. Então, já estamos vivendo o processo.

DL – Os ambulantes não são exatamente bem vistos…

AFIF – Nada disso. Inclusive isso ficou claro em pesquisa da Associação Comercial de São Paulo. E até porque grande parte dos camelôs é sustentada pelo pessoal do comércio, e grande parte das bancas na frente das lojas é de empregados seus. Nesse mundo real, o Judiciário não existe, ele tem sua própria lei. Esse mundo real não tem mais nada a ver com o Brasil legal, isso escrevi há sete anos. E a dicotomia entre o Brasil legal, formal, e o Brasil real, informal. Tanto é verdade que a Abril Vídeo está produzindo vídeos para ensinar a fazer doces, camisetas, profissões domésticas, a rigor ensinando a ir para a informalidade. Isso quer dizer que começaram a descobrir que há um enorme mercado nesses segmentos. Mercado. Sobrevivência.

DL – Então, em 92, que Deus nos ajude?

AFIF – Que nós tenhamos pessoas na nossa sociedade que enxerguem o caminho para onde ela está indo, ponham-se à frente para comandá-la e, derrubando todas as estruturas carcomidas que estão aí, vamos construir o Brasil novo. O verdadeiro Brasil novo. O que na verdade é uma tendência natural da história. E o povo sabe disso. Por mais ignorante que seja, ele é intuitivo, O povo, que foi manipulado brutalmente na eleição presidencial…

DL – Há quem ache que o povo brasileiro não sabe votar.

AFIE – 0 povo votou certo. O produto que foi colocado dentro da embalagem é que era totalmente falso.

DL – O povo votou numa embalagem?

AFIF – Na hora em que colocaram o artista para fazer o discurso, ele foi pesquisar o que o povo queria ouvir. E o que o povo queria ouvir era o discurso da modernidade, sim. Ele não fez aquilo da cabeça dele, fez porque estava no script. Eu sei por que entrei para disputar esse espaço. O povo está querendo o fato novo, está esperando isso na sua intuição. Se me perguntarem se acredito nos governantes, não acredito; nas instituições, não acredito; no Brasil como Nação, aí não tem um que não acredite. Só falta dar um sinal correto e não mentir mais, não manipular mais.

DL – Há fortes indícios de que mentir continua fazendo sucesso.

AFIF – Desculpe, não faz sucesso. A mentira é a elite que não presta se transformando para se apresentar ao povo como o povo quer, para depois fazer o que bem entende e manter o status quo. E hoje, minha mensagem para o lojista é que ele é como o elefante, que não sabe a força que tem. O lojista conscientizado disso que estou falando, faz uma revolução.

DL – Pelo que o senhor fala, já está fazendo, não?

AFIF – Claro. Transforma isso em linha de ação. Deixa de ter vergonha de estar sonegando, já que sonega para sobreviver, mesmo. Abra os peitos e fale! Ele está falando em nome de seu cliente, de seu freguês.

DL – Qual sua opinião sobre o entendimento nacional, a mudança de regime para o parlamentarismo?

AFIF – Tudo isso é conversa fiada. Jogo de cena. O comportamento político no final de 92 vai ser muito diferente do comportamento político do final de 91.

DL – Como é que o senhor consegue sentir isso?

AFIF – Intuição. Muita coisa que falei no passado foi tiro certo.

DL – Qual é a briga, hoje?

AFIF – Sobrevivência. A briga da Nação contra o Estado.

DL – No que o senhor se baseia para ser otimista quanto ao futuro?

AFIF – As perspectivas do país são muito boas, desde que se procure ter a visão do outro lado do rio, onde há um enorme espaço para ser ocupado, terras boas, clima bom. Há chances de prosperidade? Há. Só que nosso problema é atravessar o rio, ir para o outro lado. Isto é a crise. É o momento da definição. É a travessia do Rubicão. Estamos vivendo os estertores de um processo que começou em 30. O final desse século está sendo marcado por uma nova revolução no mundo. Uma revolução que não é nem liberal, nem socialista. Uma revolução que vai buscar a síntese dos modelos, para formular um para o século XXI.

Publicado na revista Diretor Lojista na edição de 11 e 12/91.

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