“O contribuinte só entrou com o bolso nessa Constituinte”

4 de outubro de 1987
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 Os parlamentares que elaboraram o projeto de reforma tributária da Constituinte têm a vaidade de assinar um texto que vem escapando praticamente incólume às pressões do meio externo. Não lograram êxito os reclames do presidente José Sarney, as ameaças do ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, insultos técnicos do Ministério da Fazenda. A única prova pela qual o documento não passou é a pressão popular. Mas esta não faltará. Quem promete o ataque, a ser desfechado a partir de terça-feira, é o deputado Guilherme Afif Domingos (PL-SP).

Elegante, dentro do figurino de ternos bem cortados, de cores sóbrias. Afável, na conversa amena e abundante em composições de fina ironia. Carismático, com discursos e gestual atento aos costumes e conceitos da classe média brasileira, Afif Domingos se prepara para mais um papel político, dentro de sua breve carreira de homem público iniciada como presidente do Banco de Desenvolvimento do Estado de São Paulo, em 1979, e complementada com a presidência da Associação Comercial (1982-1987) e o mandato de constituinte.

Na terça-feira o deputado lança em São Paulo uma ação nacional do Movimento de Defesa do Contribuinte — uma entidade criada por ele há dois anos —para protestar contra o aumento da carga tributária proposta pela Constituinte. Através da manifestação popular, o deputado espera sensibilizar a maioria dos membros da Comissão de Sistematização da Constituinte, — da qual ele não faz parte — para derrotarem os dispositivos que expõem ainda mais o bolso do cidadão à ganância do poder público.

Para a sua campanha, Afif acredita contar com o apoio de lideranças sindicais moderadas e não deixa de acenar com a possibilidade do movimento influir nas eleições municipais do próximo ano. Afif não declara, mas seus correligionários garantem que ele é o nome que o PL pretende lançar para a prefeitura de São Paulo. Na quinta-feira, antes de deixar Brasília para articular o movimento dos contribuintes, Afif recebeu para uma entrevista os repórteres da sucursal do JORNAL DO BRASIL em Brasília, Severino Góes e Inácio Muzzi.

JORNAL DO BRASIL — Por que o sr. se oferece para liderar um movimento de contribuintes?

Afif Domingos — Acontece que a forma como foi conduzida a negociação da proposta de reforma tributária excluiu o contribuinte. A única coisa que se negociou foi a divisão de receita entre estado, município e União. Houve então uma definição do saque e posteriormente uma briga pela distribuição do botim. O contribuinte só entrou com o bolso. Aliás, o sacrifício do contribuinte tem sido fundamental para manter a unidade do bloco empobrecido (Norte/Nordeste e Centro-Oeste), com o bloco enriquecido (Sul/Sudeste) na defesa deste projeto. É que em troca do apoio dos constituintes de estados ricos para a maior participação dos empobrecidos na distribuição dos fundos de participação, os constituintes dos estados pobres admitiram a criação do adicional de 5% do imposto de renda sobre ganhos com operações financeiras, a ser cobrado pelos estados. Neste caso, os estados que mais ganham são justamente os das regiões Sul e Sudeste. Criou-se um modelo de plena satisfação para todos, menos para o contribuinte.

 JB — Mas o dispositivo que trata do adicional tomou o cuidado de colocá-lo como uma opção voluntária de cada estado e além do mais liberou os salários da taxação.

Afif — Mais do que uma cautela, este tratamento é um embuste. Os estados estão empobrecidos e quem precisa de dinheiro não tem ética. O adicional vai acabar transformando-se numa regra. Não podemos desconhecer, também, que um imposto sobre a renda dificilmente deixará de ser repassado no preço do produto. Quem pagará a conta mais uma vez será o contribuinte enquanto consumidor.

JB — Este é o único risco de assalto ao bolso do contribuinte?

Afif’ — Não. Por solicitação do ministro da Fazenda, Bresser Pereira, os constituintes aceitaram introduzir na carta a ampliação do empréstimo compulsório, que até então era previsto nas nossas constituições para casos de calamidade pública e de guerra. Pelo novo texto, o empréstimo tem também a chance de surgir a partir de uma decisão do governo de enxugar a capacidade do consumo do cidadão, ou mesmo para investimento em projetos de interesse nacional. Isto é uma monstruosidade. Seja qual for a justificativa, o empréstimo sempre significará uma retirada de dinheiro do cidadão para financiar os gastos nunca controlados do governo.

JB — Já é possível se ter um cálculo de quanto o contribuinte perderá com este sistema tributário?

Afif — O projeto constituinte não fixa alíquotas. Mas a resistência da União em ceder receita — justamente pela componente de poder que aí se associa — dá para avaliar com que ótica o governo central contemplará o contribuinte caso a reforma seja aprovada. Afinal, tem se falado muito em distribuição de receita e quase nada em transferência de encargos. Então, o que acontecerá? O contribuinte mais uma vez acabará pagando.

JB — A União, estados e municípios disporiam de outros mecanismos para aumentar a receita, que não a ampliação da carga tributária?

Afif — Veja, existem estados ricos como São Paulo, que poderiam aplicar parte de sua receita na melhoria da máquina arrecadadora, para reduzir o grau de sonegação fiscal. Mas na verdade ninguém está preocupado com a eficiência. O que todo mundo quer é aumentar alíquotas. O melhor exemplo desta opção ocorreu há um mês numa reunião do Confaz— Conselho de Política Fazendária — quando os governadores do PMDB, com destaque para os de São Paulo e Minas Gerais, votaram o fim das isenções fiscais para produtos básicos hortigranjeiros. Resultado: o ovo, o leite e o frango agora ficarão mais caros. De cada cinco frangos que compra, o cidadão estará dando um ao governo do estado em forma de impostos. E quem levará  culpa deste aumento será o comerciante, porque a massa de consumidores não tem consciência dos impostos indiretos embutidos em cada mercadoria.

JB — Desde o início dos trabalhos constituintes o sr. vem se preocupando em denunciar esta prática dos impostos indiretos. Creio que chegou mesmo a apresentar uma emenda a respeito. Não é verdade?

Afif — Sim. Eu apresentei uma emenda que obriga a discriminação no rótulo de cada mercadoria de todos os impostos contidos em seu preço final. É uma fórmula que permitirá ao cidadão saber o quanto ele está pagando de impostos indiretos. Somente assim, o brasileiro alcançará a consciência de que o estado é que deve a ele e não o contrário. Acontece que esta emenda vem sendo sistematicamente perseguida pela cúpula do PMDB em todas as fases do processo constituinte O relator da Comissão de Sistematização, deputado Bernardo Cabral, chegou acatá-la para compor seu último substitutivo, mas acabou sendo pressionado pela cúpula do PMDB, numa reunião onde estavam presentes o presidente do partido, Ulysses Guimarães e lideranças do porte do ministro da Previdência Social, Raphael de Almeida Magalhães. O relator informou-me ainda que a cúpula do PMDB queria que ele, Cabral declarasse a prejudicialidade da emenda para que eu ficasse impedido de destacá-la em plenário. O deputado, porém, é um político digno, e resistiu a esta pressão.

JB — O sr. mantém então a esperança de ver este dispositivo incluído na Constituição?

Afif — Claro. Esta é uma medida de justiça, de transparência. Uma medida que a sociedade consciente exige. É uma exigência da classe média, que começa um movimento de rebelião. Uma rebelião porque ela está sentindo o custo do governo no seu dia-a-dia. Uma rebelião contra a estatocracia, os beneficiários dos gastos públicos e os políticos à cata de votos. Esta é a casta dirigente do país que resiste à descentralização do poder, à redução da carga tributária. São estes que querem tirar de todos para distribuir para alguns, que desaparecem com os recursos do FGTS — Fundo de Garantia por Tempo de Serviço —, sem dar satisfação a ninguém. Eu e o Lula (líder do PT na Constituinte) fizemos um requerimento para saber o paradeiro dos recursos do FGTS e não obtivemos resposta. Estive com o dr. Ulysses e ele disse que ia falar com o ministro chefe do Gabinete Civil, Ronaldo Costa Couto, para liberar logo estas informações, porque já está pegando mal. Mas eu duvido que tenha êxito porque este governo não tem a prática de dar satisfação ao cidadão.

JB — O sr. falou aí em rebelião. Esta sua decisão de deflagrar um movimento nacional de defesa do contribuinte é uma contribuição a esta rebelião?

Afif — Sim, por que não? A rebelião está aí latente, falta agora um vocalizador desta insatisfação. Eu me proponho a ser um destes canais, porque fui eleito com o voto do contribuinte consciente. Não sou como muita gente por aí, que foi eleito com o dinheiro do estado e agora, na Constituinte, obviamente, defende os interesses do estado.

JB — Os formuladores do projeto de reforma tributária da Constituinte, como os deputados Francisco Dornelles (PFL-RJ) e José Serra (PMDB-SP) não parecem dispostos a permitir alterações no Projeto.

Afif — Eu acho o deputado José Serra uma pessoa de extremo bom senso. Só que ele tem uma visão do tributarista. Ele tem a visão estado. Mas ele é um homem inteligente e os homens inteligentes são dóceis diante das evidências.

JB — Como o sr. concebe este movimento que nasce na terça-feira?

Afif — O movimento na verdade nasceu em 1985 em parceria minha com o dr. Yves Gandra da Silva Martins, que é um grande tributarista e na época pertencia ao Instituto dos Advogados. Este movimento nasceu no momento em que o estelionato eleitoral estava sendo preparado pelo PMDB, com aquele famoso projeto tributário, envolto em discurso demagógico com a história de que quem ganhava mais iria pagar mais. Foi quando eu me revoltei, por ter percebido a má fé do projeto. Lançamos o movimento mostrando ao contribuinte que era aparente o benefício conseguido com a redução do tributo na fonte. Alertamos que na verdade a conta seria cobrada em 1987. Mas o Congresso acabou aprovando o projeto. O contribuinte percebeu o rombo na declaração deste ano, mas foi beneficiado pela desistência do governo de aplicar a correção monetária no imposto devido e pelo parcelamento do pagamento. Mas ninguém escapará de um rombo mais substancial em 1988, quando vigorará a correção monetária plena sobre tributos e salários.

JB — Mas este movimento tem jeito de coisa da elite. Como o sr. pretende popularizá-lo.

Afif — Olha, desde 1985 nós vimos trabalhando associados a cerca de trezentas entidades de feições diversas e instaladas em vários estados brasileiros. Por exemplo, partilha dos nossos objetivos a Associação dos Mecânicos de Vôo da Varig. Isto é classe média. A classe média hoje é a classe operária também. Por isto estamos todos juntos. Eu, o Medeiros — Luiz Antônio Medeiros, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos da cidade de São Paulo — e o Magri — Antônio Magri, presidente do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo. Eu tive muitos votos nas bases destes dois líderes sindicais. Foi a bandeira de defesa do contribuinte que nos aproximou. A partir de terça-feira estaremos todos juntos alertando a população sobre os riscos deste projeto da constituinte. Vamos lançar um documento de alerta e, a partir do movimento da sociedade, procurar sensibilizar os constituintes para as propostas que dão proteção ao contribuinte. Numa segunda etapa, vamos nos preparar para as eleições municipais, estruturando um movimento para dar sustentação às candidaturas que comunguem com nossas ideias. Veja que é um movimento suprapartidário. A terceira fase será estruturar uma entidade nacional de defesa do cidadão e do contribuinte.

JB — Como o movimento se estruturará nesta primeira etapa?

Afif — Acredito que ele já tem condições de nascer forte no Estado de São Paulo, por todos os contatos que temos. Em seguida deverá se espalhar pelos estados do Sul e Sudeste, onde está a maior concentração de classe média e onde é maior a consciência da exploração do cidadão pelo Estado. Pretendemos também inaugurar uma sede para o movimento em São Paulo.

JB — Como substituir o empréstimo compulsório no papel que vem desempenhando desde a década de 50, financiando grandes projetos de infraestrutura, ou mesmo a criação de órgãos básicos para o desenvolvimento do país, como a Eletrobrás e o BNDES — Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social?

Afif — Lembro a historinha do galinho Chantecler, que toda a manhã cantava para fazer o sol nascer. Até que numa noite ele percebeu que havia perdido a voz e entrou em pânico. Se ele não cantasse o sol não nasceria. Ocorre que ele não cantou e o sol nasceu. Assim será com o empréstimo compulsório. Ele deixará de existir e isto não impedirá que o país continue tocando seus projetos de desenvolvimento. Chegou hora de mudarmos o modelo fascista-corporativista que tem comandado o Estado brasileiro. O que fizemos com estas poupanças, foi concentrar poupança compulsória nas mãos do Estado para construir a concentração de riqueza. Eu afirmo, com toda a firmeza, que faz mais pela pobreza nacional a economia informal, do que a economia formal. A concentração da riqueza nacional nas mãos do Estado tira de todos e distribui para alguns. Alguém tem notícia do destino que o Estado dá a todos os fundos que estão em seu poder? Será que não está na hora de mudar este modelo e deixar que o fluxo de capital se faça muito mais em função dos riscos e das oportunidades que surgem? Este modelo antigo fez com que no ano passado US$ 17 milhões que deveriam estar destinados aos programas de saneamento, aos programas de saúde, aos programas de educação, fossem destinados a tapar o rombo da Siderbrás, orgulho nacional, montado com a poupança do povo brasileiro. Portanto, chega de deixar os fundos nas mãos do Estado. O Estado brasileiro é estelionatário. O estelionatário é aquele que pega o dinheiro com uma finalidade e não o emprega, não dá contra prestação.

JB — Mas convenhamos que o governo é passageiro e a Constituição tem o objetivo de ser perene.

Afif — Mas eu não estou atacando este governo. Estou atacando a estrutura do Estado brasileiro. Ataco a tirania do status-quo da estatocracia. Esta coisa só tem a possibilidade de mudar com a eleição direta do presidente da República, que é o único pacto entre o político e o povo. E isto está sendo cassado agora com o prorrogacionismo do status-quo, espertamente definido como parlamentarismo. O que vamos ter é o prorrogacionismo de critérios e de sistemas.

JB — O sr. tem alguma esperança no futuro do país?

Afif— Me desespero com o Estado brasileiro, mas confio na nação brasileira. A Constituinte está trabalhando muito mais em função do interesse corporativo dos que compõem este quadro da tirania do status-quo, do que em função das necessidades do país. A proposta é manter o cidadão a serviço do Estado e não o contrário, que seria o justo, o verdadeiro. Eu me revolto contra este estado de coisas e dou cada vez mais razão a Santiago Dantas, ex-ministro de Relações Exteriores de João Goulart, quando dizia: no Brasil, o povo enquanto povo é muito melhor que a elite enquanto elite.

Publicado no Jornal do Brasil em 04/10/87

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